sexta-feira, 28 de junho de 2013

Memória frágil


A memória costuma nos pregar peças incríveis e se confiarmos cegamente nela, estaremos sujeitos a cair em ridículo, principalmente se, além de "desmemoriados", formos também teimosos. Daí a necessidade do historiador, que pretenda narrar os acontecimentos de maneira científica (se é que isso é possível), com milimétrica exatidão, de contar com um arquivo consistente, que registre os principais fatos com os detalhes essenciais, para que uma realidade que deseja preservar não seja transformada em mera ficção.

Nem tudo (ou quase nada) do que "lembramos" aconteceu exatamente da maneira que achamos. O tempo (e nem precisa ser muito longo), deturpa detalhes, modifica circunstâncias, suprime ou acrescenta personagens e assim por diante, alterando pontos essenciais do acontecimento, embora tenhamos a convicção íntima (quase sempre a temos) de estarmos certos em nossa descrição (quando a verdade não é bem assim). Em assuntos banais, nada disso tem muita importância. Mas quando se trata de algo sério...

Bertrand Russell, em sua "História da Filosofia Antiga", observa a esse respeito: "Quando nos lembramos, as lembranças nos ocorrem agora, e não são idênticas ao acontecimento lembrado. Mas a lembrança nos fornece uma 'descrição' do acontecimento passado e, para a maioria dos fins práticos, não é necessário distinguir entre a descrição e aquilo que é descrito". Por isso, não costumo me fiar muito na exatidão da chamada "Literatura Memorialística". Encaro o que é descrito como "ficção calcada em fatos reais". A menos que se trate de diário, reproduzido na íntegra, sem tirar e nem pôr, literalmente como foi escrito, dia por dia. Mesmo então, a carga de subjetividade é muito grande. O mesmo fato pode ser encarado e descrito de formas diferentes, dependendo do observador. Quando os textos são bem escritos e os episódios são interessantes, esse é um dos tipos de literatura que mais aprecio. Mas nunca tomo a narrativa em sentido literal. 

Já fiz inúmeros testes a respeito da exatidão ou não da memória (pelo menos da minha). Tentei descrever, por escrito, ocorrências relativamente recentes da minha vida (de uns dois a três anos atrás), exatamente da forma como me lembrava delas. Feitas tais descrições, confrontei-as com os registros do meu diário. Nada batia. Nem dia, nem local, nem personagens (quantos nomes trocados!) e nem conseqüências. E olhem que sempre fui tido como indivíduo com memória "de elefante", privilegiada. 

Situações angustiosas são recordadas, anos depois, como agradáveis e vice-versa. Pessoas das quais não gostávamos (ou de quem desconfiávamos) são lembradas como "amigas" e "confiáveis". Raros são os detalhes que ficam gravados como de fato eram ou aconteceram. O escritor francês Patrick Modiano (em um texto publicado no suplemento "Inéditos" da Folha de S. Paulo em 2 de outubro de 1998), também chegou a essa conclusão (possivelmente após fazer o mesmo teste que fizemos, o do diário, ou algo semelhante). Afirma: "A memória dá maior sentido, consistência e importância a determinados fatos, deixando a impressão de que vivemos intensamente o que na verdade não vivemos por inteiro".

Por que tamanha fragilidade da nossa mente, se o potencial do cérebro é virtualmente infinito? Dizem que ao longo de nossa vida não preenchemos sequer cinco por cento dos mais de quatro bilhões dos nossos neurônios com informações.  Por que temos tamanha necessidade de fantasias? Para não enlouquecermos? Para não perdermos o gosto pela vida? Para consolo da nossa velhice? É possível! Quando estamos próximos da nossa "partida", com a tarefa essencial  (que suposta ou potencialmente nos foi destinada quando do nosso nascimento) praticamente cumprida, com os filhos educados e devidamente encaminhados para seguirem seus rumos com os próprios pés, com nossos sonhos da juventude realizados (ou frustrados, na maioria das vezes), precisamos preencher o tempo que nos resta antes da morte.

Cada qual age de uma maneira diferente para esse fim, dependendo da sua educação e entendimento da realidade. Há os que mantêm o interesse pela vida até o último suspiro, não importa quantos anos vivam. Alguns, fazem a contagem regressiva para morrer, principalmente se acreditam na imortalidade da alma e em algum paraíso alhures, que crêem reunir credenciais para alcançar. Os hedonistas buscam os prazeres sensoriais até o último instante, "bebem da taça da vida até o derradeiro sorvo",  mesmo que o corpo não ajude. Há os que perdem de vista o fato da juventude haver ficado há muitos anos para trás, e que tentam viver com a sofreguidão e despreocupação dos moços,  adotando seus trajes, seus trejeitos, seus jargões e seus modismos, descambando, não raro, para o ridículo.

A maioria, porém, é solitária. Sobrevive às duras penas, entre doenças (reais e/ou imaginárias), consciente de representar um estorvo para a mesma família que criou, com tantos sacrifícios e privações pessoais. Estes não têm nada mais do que lembranças. Caso recordassem os fatos da exata maneira com que aconteceram, provavelmente seriam castigados duplamente. Teriam que reviver sofrimentos terríveis, suportados com esperança e com resignação, que superaram.

Para eles, a fragilidade da memória é uma bênção. Recordações que no fundo seriam amargas, como que num processo alquímico, são "transmutadas" em "ouro", em preciosas jóias. Pois, como Chesterton escreveu um dia, "no reino da realidade rompem-se os corações ao mesmo tempo que os contratos". É a fantasia que nos ajuda a viver. E a morrer...


Boa leitura

O Editor.
  
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Um comentário:

  1. Palmas para a profundidade infinita das suas palavras, Pedro. Creio que sem se dar conta você nos contou tudo sobre viver e morrer e de como a falha na nossa memória é a nossa salvação e não a nossa ruína. Grosseiramente falando, como dizia a minha mãe, que morreu com 68 anos: " Deus tira os dentes mas alarga a goela". Parabéns! (compartilhando)

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