Crônica de um peão
* Por Marco Albertim
Com o juízo trôpego e sem calos nas mãos, o operário seguiu a avenida a pé. Os pés, sim, tinham o solado duro, seco. Já andara feito um romeiro à cata de ocupação; não um romeiro sem rumo, crendo-se banhado com a untura de óleos divinos. Mas um romeiro de estômago quase vazio, à espreita de um salário que, mínimo que fosse, daria conta de uma refeição decente, farta de sustância.
Chegou quase no finzinho da tarde. Homens como ele também se punham na fila. As roupas eram melhores que a do operário; brins amassados, algodões de cores desbotadas mas com costuras em linha reta, sem fios soltos. As do operário, por desbotadas que fossem, igualavam-no aos outros; uma descostura sob um dos braços, outra no cós da calça, num lado da cintura, constrangiam-no para baixo da hierarquia social ali exposta; por mais que se nivelassem no prumo dos tijolos da construção ainda sem alicerces.
No escritório improvisado, um galpão com paredes de madeira e telhas de amianto, a densidade do calor seria absorvida, vista numa fumacinha de fragmentos de indistinta cor. Os ventiladores, dois, um de cada lado do chão onde se sentara o funcionário, defendiam-no do vapor, das impurezas trazidas pelo suor, pela respiração dos homens do lado de fora. Ele recebia os documentos, carteiras de trabalho, juntava-as na gaveta depois da lenta assinatura de cada um dos portadores.
O bulício da fila, no perfil de todos eles, refletia um festim vesperal. Não se portavam feito rastaqueras em véspera de banquete. Davam conta, no riso escasso, franco, do triunfo no uso da colher de pedreiro, do prumo, do nível dos tijolos crescendo verticalmente; da medida do traço da massa, na mistura do cimento com a areia. Nos olhos, nas têmporas franzidas, havia percentuais de cada material a ser usado na construção.
O operário entregou sua carteira de trabalho; entregou-a nua de experiência noutras ocupações. Agora, o carimbo da construtora na folha sôfrega de assinaturas, o poria no convívio em condições de igualdade com gente como ele, vinda da roça miúda num interior distante, cheirando a raízes tenras de inhames pequenos. O operário, inda que não sendo operário, queria ser operário.
O escritório fechou a janela de atendimento às 18 horas. O gordo funcionário, de bochechas balofas e olhos estreitos, não engordurou as palavras de despedida. Por todo o dia expusera o bom proveito que sabia tirar do salário. Com o juízo na dura peleja que aqueles homens iam enfrentar, não tinha afago nos olhos, embora com o equilibrado uso de tratamentos que equivaliam a boas-vindas. Até logo, meu velho! Tudo em paz, irmão! Boa sorte... O operário ungiu-se de sorte.
Voltou para casa a pé, creu-se com mais ânimo do que quando saíra. Os outros seguiram de ônibus. O operário, mesmo com uma merreca de dinheiro no bolso fundo, vazio, não quis abrir a guarda na poupança que se impusera para tapear o desemprego. Seus sonhos, de tão poucos, nunca se valiam de abocanho nos olhos para se mostrarem vivos; queria sentar-se na poltrona de um transporte coletivo, trocar conversa com outro mas com mãos caliçadas, absorver-lhe os urdumes.
Comeu numa birosca na esquina da rua onde morava. Um arruado estreito, sem calçamento, separando o casario de taipa, duas ou três de alvenaria. Dormiu numa rede acinzentada pelas paredes sem reboco da casa alugada. Uma construção inacabada, a dona pouco se importava com os atrasos do aluguel.
Passou o resto da semana contando os dias; com a proximidade da segunda-feira, primeiro dia do trabalho, contou as horas. Na segunda-feira, a caminho, suspeitou de que as pernas cobrariam a energia usada no trajeto para o canteiro de obras.
Chegou cedo, meia hora antes de começar a escavação para o alicerce. Uma barraca de madeira fora instalada ao lado da obra. Um casal, entrevendo lucro no fim de cada semana, com o pagamento da féria, dispôs bananas, pães, broas e leite líquido em sacos plásticos. Fiados. O operário, urdindo-se na sorte, comeu e deixou o nome na lista dos devedores.
Ele trabalhou como os outros, mas deixou pingar um suor grosso, mais grosso do que a média dos homens no cabo da enxada. Ao meio-dia aos mãos ardiam no fogo das bolhas d´água. Até o fim da tarde, cavou segurando a enxada com o cuidado de deixar vazia a cavidade das mãos.
O mestre de obras a tudo assistira, tão frio quanto a sentença do dia seguinte.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Com o juízo trôpego e sem calos nas mãos, o operário seguiu a avenida a pé. Os pés, sim, tinham o solado duro, seco. Já andara feito um romeiro à cata de ocupação; não um romeiro sem rumo, crendo-se banhado com a untura de óleos divinos. Mas um romeiro de estômago quase vazio, à espreita de um salário que, mínimo que fosse, daria conta de uma refeição decente, farta de sustância.
Chegou quase no finzinho da tarde. Homens como ele também se punham na fila. As roupas eram melhores que a do operário; brins amassados, algodões de cores desbotadas mas com costuras em linha reta, sem fios soltos. As do operário, por desbotadas que fossem, igualavam-no aos outros; uma descostura sob um dos braços, outra no cós da calça, num lado da cintura, constrangiam-no para baixo da hierarquia social ali exposta; por mais que se nivelassem no prumo dos tijolos da construção ainda sem alicerces.
No escritório improvisado, um galpão com paredes de madeira e telhas de amianto, a densidade do calor seria absorvida, vista numa fumacinha de fragmentos de indistinta cor. Os ventiladores, dois, um de cada lado do chão onde se sentara o funcionário, defendiam-no do vapor, das impurezas trazidas pelo suor, pela respiração dos homens do lado de fora. Ele recebia os documentos, carteiras de trabalho, juntava-as na gaveta depois da lenta assinatura de cada um dos portadores.
O bulício da fila, no perfil de todos eles, refletia um festim vesperal. Não se portavam feito rastaqueras em véspera de banquete. Davam conta, no riso escasso, franco, do triunfo no uso da colher de pedreiro, do prumo, do nível dos tijolos crescendo verticalmente; da medida do traço da massa, na mistura do cimento com a areia. Nos olhos, nas têmporas franzidas, havia percentuais de cada material a ser usado na construção.
O operário entregou sua carteira de trabalho; entregou-a nua de experiência noutras ocupações. Agora, o carimbo da construtora na folha sôfrega de assinaturas, o poria no convívio em condições de igualdade com gente como ele, vinda da roça miúda num interior distante, cheirando a raízes tenras de inhames pequenos. O operário, inda que não sendo operário, queria ser operário.
O escritório fechou a janela de atendimento às 18 horas. O gordo funcionário, de bochechas balofas e olhos estreitos, não engordurou as palavras de despedida. Por todo o dia expusera o bom proveito que sabia tirar do salário. Com o juízo na dura peleja que aqueles homens iam enfrentar, não tinha afago nos olhos, embora com o equilibrado uso de tratamentos que equivaliam a boas-vindas. Até logo, meu velho! Tudo em paz, irmão! Boa sorte... O operário ungiu-se de sorte.
Voltou para casa a pé, creu-se com mais ânimo do que quando saíra. Os outros seguiram de ônibus. O operário, mesmo com uma merreca de dinheiro no bolso fundo, vazio, não quis abrir a guarda na poupança que se impusera para tapear o desemprego. Seus sonhos, de tão poucos, nunca se valiam de abocanho nos olhos para se mostrarem vivos; queria sentar-se na poltrona de um transporte coletivo, trocar conversa com outro mas com mãos caliçadas, absorver-lhe os urdumes.
Comeu numa birosca na esquina da rua onde morava. Um arruado estreito, sem calçamento, separando o casario de taipa, duas ou três de alvenaria. Dormiu numa rede acinzentada pelas paredes sem reboco da casa alugada. Uma construção inacabada, a dona pouco se importava com os atrasos do aluguel.
Passou o resto da semana contando os dias; com a proximidade da segunda-feira, primeiro dia do trabalho, contou as horas. Na segunda-feira, a caminho, suspeitou de que as pernas cobrariam a energia usada no trajeto para o canteiro de obras.
Chegou cedo, meia hora antes de começar a escavação para o alicerce. Uma barraca de madeira fora instalada ao lado da obra. Um casal, entrevendo lucro no fim de cada semana, com o pagamento da féria, dispôs bananas, pães, broas e leite líquido em sacos plásticos. Fiados. O operário, urdindo-se na sorte, comeu e deixou o nome na lista dos devedores.
Ele trabalhou como os outros, mas deixou pingar um suor grosso, mais grosso do que a média dos homens no cabo da enxada. Ao meio-dia aos mãos ardiam no fogo das bolhas d´água. Até o fim da tarde, cavou segurando a enxada com o cuidado de deixar vazia a cavidade das mãos.
O mestre de obras a tudo assistira, tão frio quanto a sentença do dia seguinte.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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