quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012







Mamãe mandou dizer que é nesta daqui

* Por Mara Narciso


O terreno foi comprado, o serviço contratado, e a documentação buscada após quatro dias. Nesta ocasião foi feita a verificação do trabalho, se tudo estava de acordo. Um amigo foi receber o serviço. Chegou, olhou o canteiro, o ressalto de terra, a grama esmeralda, tudo conforme o combinado. A marcação estava correta com o nome e as datas. Tudo caminhava para a normalidade, exceto a dúvida quanto ao local. Não era o túmulo três e sim o de numeração quatro que estava arrumado. As flores campestres amarelas tinham sido retiradas, e jaziam num canto. Todo o restante era pura ordem.
Os documentos do cemitério diziam que meu pai, Alcides Alves da Cruz, ao contrário do que eu me lembrava, estava sepultado no setor nove D quatro. Tomei um susto. O chão do meu local de trabalho, onde a agenda era vencida de forma frenética, sumiu dos meus pés. Pedi que fosse procurado o administrador do cemitério e verificasse como seria a disposição dos túmulos. Depois nova ligação e a certificação. A documentação dizia que na cova três tinha sido enterrada a senhora Rosa Virgília Gonçalves, ao lado do meu pai. Descobrimos que seu sepultamento tinha sido no mesmo dia, porém uma hora mais tarde. Meu pai estaria um túmulo adiante daquele onde eu me recordava.
Fiquei louca com o fato, pois em minha memória, no dia do enterro, tudo se passara na outra sepultura. O zelador do local ainda brincou que estivemos rezando no lugar errado. Fez graça, mas não era nada engraçada essa dúvida. O terreno fora comprado para evitar o translado após os três anos da morte. A ida para o ossário poderia acontecer caso tivesse havido um equívoco dos coveiros. A sequência estava pré-determinada pela administração, e esta poderia ter sido invertida, já que meu pai chegou antes da outra.
Com muita paciência o administrador conferiu pessoalmente todo o setor, vendo o mapa e verificando o nome nos túmulos. Tudo estava conferindo. Eram 51 deles. Num extremo, caso persistisse a dúvida, para exumar os corpos teria de ser pedida uma autorização à Justiça. Possivelmente não seria necessário um teste de DNA, por se tratar de homem e mulher, fáceis de ser diferenciados, mesmo dois anos após o falecimento.
Com o nome da vizinha de túmulo, procurei o endereço de quem providenciou o enterro, e fui lá. Logo vi o filho dela, Paulo Anselmo, que foi atencioso e entendeu meu drama. Contei da minha dúvida, sem, contudo, especificar o local, e terminei com uma pergunta: onde a sua mãe está enterrada? Ele respondeu de pronto: na cova três. Logo se dispôs a ir lá verificar e mostrar in loco onde era.
Liguei para meu filho, que esteve no cemitério comigo três vezes, e ele falou que era na sepultura três. Lembrava de ter colocado, junto com sua prima, duas coroas de flores no local. Ligou para ela, para ver se ela se lembrava, mas foi em vão. Minha sobrinha tinha se esquecido onde era. Eu estava com dúvida agora, depois de Paulo Anselmo falar sem hesitação.
No dia do sepultamento, eu fiquei a meia distância da cova, porque iriam reabrir o caixão, e eu não queria rever meu pai. Fiquei debaixo de uma árvore próxima. Assim, não tinha mais tanta certeza. O terreno, o trabalho no canteiro e a cruz estavam pagos, mas o sofrimento persistia. Fiquei imaginando a cova comum e sofrendo. Fiz tudo e não fiz nada. Não pude dar o ponto final. Pensei comprar as duas sepulturas, mas antes quis fazer a última prova.
Hoje, domingo, telefonei para o filho de Rosa Virgília, e com meu filho, passei em sua casa e fomos juntos ao cemitério. Logo ao entrarmos ele apontou o lugar. Fui até a árvore onde fiquei na exata hora do enterro, e não estava certa de mais nada. Já Paulo Anselmo foi certinho e disse ter convicção de sua mãe ter sido enterrada na cova três. Antes de levar o féretro, ele já estava ciente da numeração. Então viu o caixão descer na sepultura três.
Não há mais adivinhação. O assunto está encerrado.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

3 comentários:

  1. Não bastassem a dor e a saudade, sentimentos naturalmente envolvidos na questão, você ainda passa por essa confusão toda. Imagino que tenha sido difícil lidar com um desencontro assim, em se tratando de entes queridos tão próximos. Espero que tenha encerrado o caso em paz consigo mesma - isso é o que importa. Um grande abraço, Mara.

    ResponderExcluir
  2. Amigos, depois dessa nova confusão, felizmente estou em paz. Tudo resolvido. Obrigada pelos comentários e pela força. Estou fora de casa, numa lan house, e assim minha comunicação está precária. Desculpe a falta de participação por esse dias.

    ResponderExcluir