Assunção
* Por Marcos Albertim
Os sinos repicaram no fim da tarde; primeiro os da matriz, seguidos pelos das igrejas de outras ruas. A multidão comprimiu-se nos bancos, nos corredores. Com os olhos na abóbada, beatos gemiam em arroubos cegos. Anjos com o sexo coberto por tufos de nuvens, davam proteção a um Cristo imberbe, vestido numa túnica púrpura.
Todo o espaço da calçada da frente fora ocupado. A multidão se estendera por dois quarteirões, ocupando a rua larga, as calçadas de lado. Hosana! Hosana! Fé ruidosa e bulício nos ramos de eucalipto.
O Cristo, vigiante, assentia com os dois olhos de peixe morto. Não fazia caso da astúcia dos fiéis de ocasião.
Devotos na calçada criam-se perdoados de pecados indistintos, na prestidigitação dos olhos do Cristo. Frei Feliciano, na frente, salpicava de água-benta quem se aproximasse de suas vestes, ou gritasse mais alto o viva do Domingo de Ramos. Atrás, o sacristão segurava o vaso meio de água. Os pingos davam a impressão de alívio no suor de cada rosto. As gotas de frei Feliciano tinham a bênção do celibato dele, purgariam enquanto não secassem.
Ele percorrera ruas, apertara-se nos becos, ouvira gritos de janelas; seu nome fora gritado e sabia que os óculos brancos, sem aro, no rosto barroco, o livraram de culpas. Frei Feliciano tinha fé em Cristo e dúvidas quanto às razões de seu celibato por trinta e três anos. Cada vez que o nome do frade era gritado, um frio descia de seu tronco; podia ser de gratidão pela cura que sua palavra trouxera; podia ser da hesitação no rosto anunciando o desassossego do sexo.
Quando levantou a perna direita para subir na calçada, ele olhou para cima. Confirmava a fé na cruz em cima da igreja. O céu se cobrira de nuvens de fogo. Por todo o percurso da procissão, não olhara para cima para não dar sinais de insegurança no ofício. Entrando na igreja, sentiu-se o mais inseguro da multidão. Chamou o sacristão para perto, salpicou com água-benta fiéis imprecisos, distraiu os outros e distraiu-se.
Cristo fora execrado pela mesma multidão que o aclamara. Temia, o frade, pragas do mesmo povo que lhe dera boas-vindas. Quis hipnotizar-se na luz vermelha do Sagrado Coração, surdo às imprecações do próprio juízo.
Abriu a bíblia de uso pessoal no livro do profeta Samuel. A página estava dobrada.
Podia pronunciar de memória o trecho familiar a seu devaneio; leu sem olhar para a multidão: “Era ruivo, de belo semblante e admirável presença.” O sacristão não notou que ele imiscuíra o trecho do livro de Samuel com o kyrie. Teria dito: “Senhor, tende piedade de nós...” Mas o ajudante, tão familiarizado com a súplica, já a supunha mesmo com a boca do frade fechada.
Proveu-se, frei Feliciano, da alma de Jônatas no amor a Davi. O rumor de orações ocultou o seu transe.
A missa terminou à noite, com a luz incerta cobrindo cada nicho do altar-mor. Ele tirou as vestes com a ajuda do sacristão. Saiu pelo corredor da sacristia, de seu uso e do sacristão. Com a batina de uso diário, andou os cinco quarteirões rumo a casa. Fora cumprimentado por todos, quis sofrer na quietude de seu quarto. Os lábios tremiam, segurava-os com os dentes, com a língua insofrida. Tinha medo de pôr-se na multidão dispersa, de ser julgado por um trejeito evadido de sua alma excitada. No último quarteirão, na esquina, foi chamado por uma voz rouca. Virou-se. Dona Generina convidou-o para um café. Não havia como recusar o convite de quem se incitava com preces e hóstias.
A velha cedeu a cadeira de balanço, onde estirava o corpo depois das refeições; sentou-se numa de respaldo fixo, de palha. Frei Feliciano acomodou a dignidade do ofício, o trejeito inconfesso. O café foi trazido na bandeja pela criada, café com biscoitos. A velha mesma os fizera, e se julgaria desfeiteada se o vigário não os comesse. Um incidente não deixou que a presença dele fosse uma purgação de costumes. Segurando pires e xícara, deixou o tronco fundir-se no respaldo da cadeira. Sentira que assim o corpo estaria imune às injunções do juízo dos outros. Mas não evitou que a xícara, inclinada para o seu corpo, deixasse cair o café; molhou o pires, a batina de cor cremosa. A velha afligiu-se mais, chamou a criada; não consentiu que a negra enxugasse a roupa do frade. Com o guardanapo, ergueu com sacrifício a gordura do corpo e esfregou-o na batina do frade.
- Não faz mal – apressou-se ele.
- Logo vai secar.
Tinha medo, ela, que não experimentasse o biscoito. Queria ouvir dele um elogio. Olhou para a estatueta de Cristo na parede e confessou:
- Como o senhor se parece com ele... Não tem nenhuma queixa no rosto, só a resignada paciência.
- A senhora é muito generosa. Não há bondade igual à de Cristo. Todos nós nos espelhamos nele, só isso.
- Verdade, frei Feliciano.
Passaria toda a noite ali, ocultando temores, fingindo deleite na expiação tardia da velha Generina. O isolamento de seu quarto e o sobrado da velha serviam de retiro a seu feminismo inconfesso. Ela, 70 anos, não se casara; aos sessenta, ocupara-se com receitas de cozinha, com rezas e com visitas que ela mesma convidava, para distrair-se do desamparo. Espreitava a morte com olhos mortos, e tinha medo que a pusessem num caixão junto com imprecisas dívidas com Deus. Confessava-se em casa, na cadeira onde estava frei Feliciano. Ele ouvia os pecados que não eram pecados, mas súplicas de oração para entrar no céu. Repetia uma prece curtida, para obter a receita da beatitude numa bênção só para si. A velha não tinha crises como seu confessor; virgem, há muito sublimara a inquietação do sexo. Frei Feliciano, trinta e três anos, tinha o cérebro zonzo de orações para pôr fim ao desassossego de seu pênis à cata de um igual.
Ele despediu-se pensando num monólogo sem testemunhas, no seu quarto. A casa paroquial, do outro lado da praça, estava fechada. Alguns paroquianos entretinham-se numa conversa vadia na calçada. Para evitá-los, ele andou pelo meio da praça, na direção do cruzeiro de pedras. Não havia ninguém em redor. Para justificar o desvio, parou junto ao cruzeiro, observando os estragos nas pedras de cantaria. As pedras, acomodadas em forma de pirâmide, com a cruz em cima, tinham roeduras entre uma e outra. Um câncer as corroía, sem que nada pudesse ser feito. Frei Feliciano sabia disso, e comparava sua alma à marcha do câncer.
O empregado abriu a porta, notou suores no rosto do frade.
- O banho está pronto, com água quente – adiantou.
Vento frio no mês de agosto. As árvores faziam corrupios. Ninguém se vestia para se proteger de baixas temperaturas; era costume o uso de jaquetas curtas. Frei Feliciano, curtido no quarto, sentiu suores na roupa fina, na desordem do juízo.
Deitou-se na banheira, presumindo-se imune ao parecer dos outros. As paredes, familiares ao despudor de seu corpo nu, incitaram-no ao onanismo fácil. O sêmen farto, espremido, escorreu junto com a água no ralo da banheira. O frade prostrou-se, ficou sentado até sentir o risco de lágrima sob os olhos. Pôs a cabeça sob o chuveiro, chorou para evadir-se da inconformação.
Depois...
- Posso botar o jantar? – perguntou o empregado.
- Pode.
Podia se comparar a Adônis, mas depois do gozo, nauseara-se no próprio rosto olhando para o espelho.
O empregado acudiu-o no ombro. Frei Feliciano sentou-se para comer, entrevendo o sonho de ser possuído por outro que por certo o observara no percurso da procissão.
- Serafim!
O velho acudiu-o da cozinha, com impressões confusas. Admirava-o pelo que julgava ser a santidade de seu rosto, sem atinar para os transtornos do celibato.
- Pode ir para casa. Eu mesmo lavo as louças.
Serafim saiu pelo portão dos fundos, no oitão. Frei Feliciano se deu conta do vazio em cada canto da casa. De frente para ele, um quadro com a imagem do arcebispo. Mirou-o como de costume, sem se subjugar. O arcebispo o queria no domínio dos homens que tinham na oração o único meio de contato com Deus. Não havia contato. As orações continham o tropel do coração, enquanto durasse o efeito. Ele sentia inveja de homens e mulheres que não se preocupavam com a rotina imutável de cada dia. Queria limitar as demandas da alma, ainda que ao preço do embotamento do juízo. Sentar-se como um devasso num bordel, pernas cruzadas, ouvir a putaria alegre de homens e mulheres.
Em frente a sua cama, fitou o Cristo de joelhos chagados. Não rezou, deleitou-se na simetria do corpo musculoso.
No sono, na incúria de seu sono capturaria o prazer que o dia a dia lhe negava.
Mais vento, os galhos se retorcendo. Um e outro automóvel em marcha vagarosa.
Ele abriu a janela da frente para se espreitar no tempo que o dia anunciava. Serafim entrara pelo portão, preparava o café. Com o guarda-chuva, frei Feliciano foi ao cruzeiro. A chuva apagara as poucas velas da véspera. A água deslizava sobre o musgo nas pedras. Às sete horas o sol mostrou-se, às dez enxugara o cruzeiro. À tarde, junto com Serafim, muniu-se de espátulas para remover o musgo. Trabalharam toda a tarde. No começo da noite, despejaram água para a limpeza. A lua cobriu o cruzeiro. Outra vez a cantaria luziu.
Suspeitou, ele, não ser um incréu rejeitado. O passeio nas calçadas retomara o ritmo de costume. Ninguém o inquiria de sua sodomia latente.
- Hosana! – gritou com os braços abertos, olhando para a cruz.
O frade comera em silêncio na noite de hosana, dispensara o criado antes da hora, olhara com enfado a chuva no começo do dia. Agora, segurando um galho de eucalipto, cumprimentava a cruz com alegria. Serafim assustou-se.
- Não se preocupe, Serafim. Ontem ouvi os gritos do povo. Hoje faço uma homenagem particular a Cristo.
- Deus o escuta todos os dias, frei Feliciano. O senhor não tem pecados.
- Todos os homens têm os seus pecados e só Deus os escuta. Todos nós somos pecadores aos olhos dele. Não se esqueça disso. É para evitar a presunção.
- O senhor me assusta, frei. Deus me livre e guarde.
- Também o susto traz equilíbrio para a alma. Pense assim que o susto passa.
Serafim jantou na mesma mesa com frei Feliciano. Não olharam para o arcebispo, só para a canja gorda no prato fundo. Depois, cada um recolheu-se no seu canto. O frade, deitado, sentiu remorsos e só dormiu depois que foi à latrina.
No terceiro dia depois do Domingo de Ramos, a criada de dona Generina avisou-o de que fora convidado para o almoço.
Os dois rezaram antes de cortar o lombo no centro da mesa. A negra, de pé, braços para trás, à espera de ordens. A velha nunca supusera que o Cristo de olhos chorosos, na parede, podia ser o indício de que a humanidade sentia fome.
Silêncio. Frei Feliciano não sabia falar enquanto comia, não com a mesa tão farta de comida. A velha examinava-o, vincando o rosto num riso custoso. Ele engolia, ela vincava os beiços.
Tédio. A tarde arrastou-se sem querer. Ela dormiu na cadeira onde se confessava. Ele saiu recomendando-a. A negra fez que sim no silêncio a que estava sentenciada.
Em casa, ele sentou-se para o desfastio. Tirara a batina grossa, pusera-se de calça e camisa. Tarde da noite foi ao cruzeiro; encostou-se num dos lados e tirou do bolso uma vela e a acendeu. Ajoelhou-se e rezou para não ser interrompido por estranhos. Não havia ninguém na praça. Baixou a cabeça, soluçou. Sujou-se nos fios apagados das velas. Os cabelos cobriram os óculos, da boca escorreu uma baba de desespero. Manteve-se de joelhos e gritou:
- Hosana nas alturas!
Perto do amanhecer, Serafim acordou-o no local, com o ombro e a cabeça apoiados na cantaria.
- Está sofrendo pelos pecados dos outros – disse o velho.
Refez-se na banheira; não disse nada, confiando no juízo ingênuo de Serafim. Não saiu de casa, não naquele dia.
No quarto dia depois do Domingo de Ramos, a negra criada veio dar aviso de que a patroa agonizava, queria confessar-se.
A velha não o distinguiu, viu sua batina enxamear-se nos raios de sol que os poucos telhados de vidro deixavam escoar para a porta do quarto. Não teve forças para espremer da memória os poucos pecados. Ungiu-se na água-benta.
Deu-se o enterro no fim da tarde, com o céu sobre o mesmo fogo que o incendiara no crepúsculo do Domingo de Ramos. Frei Feliciano voltou para casa cogitando na própria morte. Não se surpreendeu com o pouco caso que fizera quanto a dona Generina ter entendido ou não como receber a bênção pessoal de Cristo.
Dormiu crendo-se sem conflito com a pederastia inconfessa.
Uma semana depois do Domingo de Ramos, rezou a missa. No altar, fixou-se na luz do Sagrado Coração, instilando-se de razões. Abriu a bíblia, leu sem medo o livro de Samuel, mirando-se no amor de Jônatas por Davi.
Quando saiu da igreja foi cumprimentado por um moço paroquiano. O rapaz parabenizou-o pela escolha da leitura. Caminharam até o cruzeiro, ajoelharam-se. Sorriram um para o outro. Frei Feliciano olhou para cima, e disse baixo:
- Hosana...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Os sinos repicaram no fim da tarde; primeiro os da matriz, seguidos pelos das igrejas de outras ruas. A multidão comprimiu-se nos bancos, nos corredores. Com os olhos na abóbada, beatos gemiam em arroubos cegos. Anjos com o sexo coberto por tufos de nuvens, davam proteção a um Cristo imberbe, vestido numa túnica púrpura.
Todo o espaço da calçada da frente fora ocupado. A multidão se estendera por dois quarteirões, ocupando a rua larga, as calçadas de lado. Hosana! Hosana! Fé ruidosa e bulício nos ramos de eucalipto.
O Cristo, vigiante, assentia com os dois olhos de peixe morto. Não fazia caso da astúcia dos fiéis de ocasião.
Devotos na calçada criam-se perdoados de pecados indistintos, na prestidigitação dos olhos do Cristo. Frei Feliciano, na frente, salpicava de água-benta quem se aproximasse de suas vestes, ou gritasse mais alto o viva do Domingo de Ramos. Atrás, o sacristão segurava o vaso meio de água. Os pingos davam a impressão de alívio no suor de cada rosto. As gotas de frei Feliciano tinham a bênção do celibato dele, purgariam enquanto não secassem.
Ele percorrera ruas, apertara-se nos becos, ouvira gritos de janelas; seu nome fora gritado e sabia que os óculos brancos, sem aro, no rosto barroco, o livraram de culpas. Frei Feliciano tinha fé em Cristo e dúvidas quanto às razões de seu celibato por trinta e três anos. Cada vez que o nome do frade era gritado, um frio descia de seu tronco; podia ser de gratidão pela cura que sua palavra trouxera; podia ser da hesitação no rosto anunciando o desassossego do sexo.
Quando levantou a perna direita para subir na calçada, ele olhou para cima. Confirmava a fé na cruz em cima da igreja. O céu se cobrira de nuvens de fogo. Por todo o percurso da procissão, não olhara para cima para não dar sinais de insegurança no ofício. Entrando na igreja, sentiu-se o mais inseguro da multidão. Chamou o sacristão para perto, salpicou com água-benta fiéis imprecisos, distraiu os outros e distraiu-se.
Cristo fora execrado pela mesma multidão que o aclamara. Temia, o frade, pragas do mesmo povo que lhe dera boas-vindas. Quis hipnotizar-se na luz vermelha do Sagrado Coração, surdo às imprecações do próprio juízo.
Abriu a bíblia de uso pessoal no livro do profeta Samuel. A página estava dobrada.
Podia pronunciar de memória o trecho familiar a seu devaneio; leu sem olhar para a multidão: “Era ruivo, de belo semblante e admirável presença.” O sacristão não notou que ele imiscuíra o trecho do livro de Samuel com o kyrie. Teria dito: “Senhor, tende piedade de nós...” Mas o ajudante, tão familiarizado com a súplica, já a supunha mesmo com a boca do frade fechada.
Proveu-se, frei Feliciano, da alma de Jônatas no amor a Davi. O rumor de orações ocultou o seu transe.
A missa terminou à noite, com a luz incerta cobrindo cada nicho do altar-mor. Ele tirou as vestes com a ajuda do sacristão. Saiu pelo corredor da sacristia, de seu uso e do sacristão. Com a batina de uso diário, andou os cinco quarteirões rumo a casa. Fora cumprimentado por todos, quis sofrer na quietude de seu quarto. Os lábios tremiam, segurava-os com os dentes, com a língua insofrida. Tinha medo de pôr-se na multidão dispersa, de ser julgado por um trejeito evadido de sua alma excitada. No último quarteirão, na esquina, foi chamado por uma voz rouca. Virou-se. Dona Generina convidou-o para um café. Não havia como recusar o convite de quem se incitava com preces e hóstias.
A velha cedeu a cadeira de balanço, onde estirava o corpo depois das refeições; sentou-se numa de respaldo fixo, de palha. Frei Feliciano acomodou a dignidade do ofício, o trejeito inconfesso. O café foi trazido na bandeja pela criada, café com biscoitos. A velha mesma os fizera, e se julgaria desfeiteada se o vigário não os comesse. Um incidente não deixou que a presença dele fosse uma purgação de costumes. Segurando pires e xícara, deixou o tronco fundir-se no respaldo da cadeira. Sentira que assim o corpo estaria imune às injunções do juízo dos outros. Mas não evitou que a xícara, inclinada para o seu corpo, deixasse cair o café; molhou o pires, a batina de cor cremosa. A velha afligiu-se mais, chamou a criada; não consentiu que a negra enxugasse a roupa do frade. Com o guardanapo, ergueu com sacrifício a gordura do corpo e esfregou-o na batina do frade.
- Não faz mal – apressou-se ele.
- Logo vai secar.
Tinha medo, ela, que não experimentasse o biscoito. Queria ouvir dele um elogio. Olhou para a estatueta de Cristo na parede e confessou:
- Como o senhor se parece com ele... Não tem nenhuma queixa no rosto, só a resignada paciência.
- A senhora é muito generosa. Não há bondade igual à de Cristo. Todos nós nos espelhamos nele, só isso.
- Verdade, frei Feliciano.
Passaria toda a noite ali, ocultando temores, fingindo deleite na expiação tardia da velha Generina. O isolamento de seu quarto e o sobrado da velha serviam de retiro a seu feminismo inconfesso. Ela, 70 anos, não se casara; aos sessenta, ocupara-se com receitas de cozinha, com rezas e com visitas que ela mesma convidava, para distrair-se do desamparo. Espreitava a morte com olhos mortos, e tinha medo que a pusessem num caixão junto com imprecisas dívidas com Deus. Confessava-se em casa, na cadeira onde estava frei Feliciano. Ele ouvia os pecados que não eram pecados, mas súplicas de oração para entrar no céu. Repetia uma prece curtida, para obter a receita da beatitude numa bênção só para si. A velha não tinha crises como seu confessor; virgem, há muito sublimara a inquietação do sexo. Frei Feliciano, trinta e três anos, tinha o cérebro zonzo de orações para pôr fim ao desassossego de seu pênis à cata de um igual.
Ele despediu-se pensando num monólogo sem testemunhas, no seu quarto. A casa paroquial, do outro lado da praça, estava fechada. Alguns paroquianos entretinham-se numa conversa vadia na calçada. Para evitá-los, ele andou pelo meio da praça, na direção do cruzeiro de pedras. Não havia ninguém em redor. Para justificar o desvio, parou junto ao cruzeiro, observando os estragos nas pedras de cantaria. As pedras, acomodadas em forma de pirâmide, com a cruz em cima, tinham roeduras entre uma e outra. Um câncer as corroía, sem que nada pudesse ser feito. Frei Feliciano sabia disso, e comparava sua alma à marcha do câncer.
O empregado abriu a porta, notou suores no rosto do frade.
- O banho está pronto, com água quente – adiantou.
Vento frio no mês de agosto. As árvores faziam corrupios. Ninguém se vestia para se proteger de baixas temperaturas; era costume o uso de jaquetas curtas. Frei Feliciano, curtido no quarto, sentiu suores na roupa fina, na desordem do juízo.
Deitou-se na banheira, presumindo-se imune ao parecer dos outros. As paredes, familiares ao despudor de seu corpo nu, incitaram-no ao onanismo fácil. O sêmen farto, espremido, escorreu junto com a água no ralo da banheira. O frade prostrou-se, ficou sentado até sentir o risco de lágrima sob os olhos. Pôs a cabeça sob o chuveiro, chorou para evadir-se da inconformação.
Depois...
- Posso botar o jantar? – perguntou o empregado.
- Pode.
Podia se comparar a Adônis, mas depois do gozo, nauseara-se no próprio rosto olhando para o espelho.
O empregado acudiu-o no ombro. Frei Feliciano sentou-se para comer, entrevendo o sonho de ser possuído por outro que por certo o observara no percurso da procissão.
- Serafim!
O velho acudiu-o da cozinha, com impressões confusas. Admirava-o pelo que julgava ser a santidade de seu rosto, sem atinar para os transtornos do celibato.
- Pode ir para casa. Eu mesmo lavo as louças.
Serafim saiu pelo portão dos fundos, no oitão. Frei Feliciano se deu conta do vazio em cada canto da casa. De frente para ele, um quadro com a imagem do arcebispo. Mirou-o como de costume, sem se subjugar. O arcebispo o queria no domínio dos homens que tinham na oração o único meio de contato com Deus. Não havia contato. As orações continham o tropel do coração, enquanto durasse o efeito. Ele sentia inveja de homens e mulheres que não se preocupavam com a rotina imutável de cada dia. Queria limitar as demandas da alma, ainda que ao preço do embotamento do juízo. Sentar-se como um devasso num bordel, pernas cruzadas, ouvir a putaria alegre de homens e mulheres.
Em frente a sua cama, fitou o Cristo de joelhos chagados. Não rezou, deleitou-se na simetria do corpo musculoso.
No sono, na incúria de seu sono capturaria o prazer que o dia a dia lhe negava.
Mais vento, os galhos se retorcendo. Um e outro automóvel em marcha vagarosa.
Ele abriu a janela da frente para se espreitar no tempo que o dia anunciava. Serafim entrara pelo portão, preparava o café. Com o guarda-chuva, frei Feliciano foi ao cruzeiro. A chuva apagara as poucas velas da véspera. A água deslizava sobre o musgo nas pedras. Às sete horas o sol mostrou-se, às dez enxugara o cruzeiro. À tarde, junto com Serafim, muniu-se de espátulas para remover o musgo. Trabalharam toda a tarde. No começo da noite, despejaram água para a limpeza. A lua cobriu o cruzeiro. Outra vez a cantaria luziu.
Suspeitou, ele, não ser um incréu rejeitado. O passeio nas calçadas retomara o ritmo de costume. Ninguém o inquiria de sua sodomia latente.
- Hosana! – gritou com os braços abertos, olhando para a cruz.
O frade comera em silêncio na noite de hosana, dispensara o criado antes da hora, olhara com enfado a chuva no começo do dia. Agora, segurando um galho de eucalipto, cumprimentava a cruz com alegria. Serafim assustou-se.
- Não se preocupe, Serafim. Ontem ouvi os gritos do povo. Hoje faço uma homenagem particular a Cristo.
- Deus o escuta todos os dias, frei Feliciano. O senhor não tem pecados.
- Todos os homens têm os seus pecados e só Deus os escuta. Todos nós somos pecadores aos olhos dele. Não se esqueça disso. É para evitar a presunção.
- O senhor me assusta, frei. Deus me livre e guarde.
- Também o susto traz equilíbrio para a alma. Pense assim que o susto passa.
Serafim jantou na mesma mesa com frei Feliciano. Não olharam para o arcebispo, só para a canja gorda no prato fundo. Depois, cada um recolheu-se no seu canto. O frade, deitado, sentiu remorsos e só dormiu depois que foi à latrina.
No terceiro dia depois do Domingo de Ramos, a criada de dona Generina avisou-o de que fora convidado para o almoço.
Os dois rezaram antes de cortar o lombo no centro da mesa. A negra, de pé, braços para trás, à espera de ordens. A velha nunca supusera que o Cristo de olhos chorosos, na parede, podia ser o indício de que a humanidade sentia fome.
Silêncio. Frei Feliciano não sabia falar enquanto comia, não com a mesa tão farta de comida. A velha examinava-o, vincando o rosto num riso custoso. Ele engolia, ela vincava os beiços.
Tédio. A tarde arrastou-se sem querer. Ela dormiu na cadeira onde se confessava. Ele saiu recomendando-a. A negra fez que sim no silêncio a que estava sentenciada.
Em casa, ele sentou-se para o desfastio. Tirara a batina grossa, pusera-se de calça e camisa. Tarde da noite foi ao cruzeiro; encostou-se num dos lados e tirou do bolso uma vela e a acendeu. Ajoelhou-se e rezou para não ser interrompido por estranhos. Não havia ninguém na praça. Baixou a cabeça, soluçou. Sujou-se nos fios apagados das velas. Os cabelos cobriram os óculos, da boca escorreu uma baba de desespero. Manteve-se de joelhos e gritou:
- Hosana nas alturas!
Perto do amanhecer, Serafim acordou-o no local, com o ombro e a cabeça apoiados na cantaria.
- Está sofrendo pelos pecados dos outros – disse o velho.
Refez-se na banheira; não disse nada, confiando no juízo ingênuo de Serafim. Não saiu de casa, não naquele dia.
No quarto dia depois do Domingo de Ramos, a negra criada veio dar aviso de que a patroa agonizava, queria confessar-se.
A velha não o distinguiu, viu sua batina enxamear-se nos raios de sol que os poucos telhados de vidro deixavam escoar para a porta do quarto. Não teve forças para espremer da memória os poucos pecados. Ungiu-se na água-benta.
Deu-se o enterro no fim da tarde, com o céu sobre o mesmo fogo que o incendiara no crepúsculo do Domingo de Ramos. Frei Feliciano voltou para casa cogitando na própria morte. Não se surpreendeu com o pouco caso que fizera quanto a dona Generina ter entendido ou não como receber a bênção pessoal de Cristo.
Dormiu crendo-se sem conflito com a pederastia inconfessa.
Uma semana depois do Domingo de Ramos, rezou a missa. No altar, fixou-se na luz do Sagrado Coração, instilando-se de razões. Abriu a bíblia, leu sem medo o livro de Samuel, mirando-se no amor de Jônatas por Davi.
Quando saiu da igreja foi cumprimentado por um moço paroquiano. O rapaz parabenizou-o pela escolha da leitura. Caminharam até o cruzeiro, ajoelharam-se. Sorriram um para o outro. Frei Feliciano olhou para cima, e disse baixo:
- Hosana...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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