sábado, 3 de junho de 2017

Os pés negros de Paris


* Por Pablo Uchoa


De Paris


O senhor está bem, monsieur?

Os olhinhos azuis daquela senhora francesa me enquadravam com certa compaixão. Franzidos sobre a pele branca, seriam de uma criança curiosa não fossem umas rugas que desciam pelas maçãs do rosto até se encontrar novamente no queixo, como dois riscos do mesmo pincel. Eu estava ainda sob emoção, mas lembro-me de ter pensado, era um pincel e essas feições bem que poderiam ter cruzado antes meu caminho. Teria sido no museu d’Orsay?

Ça va, insistiu a senhora. De onde? Atenciosa assim, não será parisiense.

Três bien, madame – respondi, afinal. É apenas a beleza, essa beleza.

Há alguns minutos eu permanecia no mesmo lugar, os olhos marejados diante do teatro-caixa-de-fósforos onde há quase uma década assisti pela primeira vez a uma montagem de
A Cantora Careca, de Eugène Ionesco.

Teatro de la Huchette, na rua de mesmo nome, uma portinha branca e negra apertada entre uma profusão de restaurantes gregos. Ali encenam
A Cantora Careca às 19h e logo às 20h, outra peça de Ionesco, La Leçon, esta há quase meio século em cartaz, exatamente 48 anos, informa o luminoso. O que significa dizer que não sou o primeiro nem serei o último a marejar os olhos diante desta portinha branca e preta no beau-milieu de Paris.

De lá, caminho pelas margens do rio Sena ladeando a famosa livraria Shakespeare & Co, cruzo a ponte que leva à Île St-Louis e passeio narigudo entre vitrines de chocolates, queijos,
charcuterie, livros. É que estamos no inverno, no verão os namorados tomam as mesotas do lado de fora dos bistrôs e ali permanecem horas plantados, com o cenário da catedral de Nôtre Dame e dos barcos que passam levando os turistas pelos tours fluviais.

Irritam-me os olhos marejados. Devo perdoar os franceses por tanta beleza?

Menos de uma hora antes, numa loja de discos, eu cantava os versos de uma Paris muito menos gaulesa, nada tradicional, de fala e vestes árabes. É quando escuto a mescla magrebiana de sons e palavras que me sinto na França contemporânea. De resto, se os francófilos me perdoarem a generalização, o país tem uma forte inclinação a subsistir do seu próprio mito.

Pois quando há quase dez anos estive aqui e vi A
Cantora Careca pela primeira vez, estudava na arrogante Sorbonne um programa de língua e civilização francesa – e sentia como se minha primitiva civilização latino-americana estivesse sendo refinada por aqueles livros empoeirados sobre a revolução de 1789, as horas debruçado sobre textos de Diderot, Montesquieu e os autores da Enciclopédia.

A língua francesa pertencia à França – que se falasse o mesmo idioma na América ou na África era apenas uma devoção do outros povos à bela língua da diplomacia. As aulas de pronúncia, nem é necessário dizer que uma pronúncia extremamente parisiense, eram rigorosíssimas, e os ditados se praticavam no quadro negro, na frente de toda a sala de aula.

Falar francês, dizia Madame la Professora, não é apenas juntar palavras, é saber juntá-las com elegância.

Não nego que foi um grande período de minha curta vida, é evidente, afinal em qualquer nível avançado uma língua se deve falar
élégamment. Ademais, naqueles meses descobri em Molière um dos meus autores preferidos, e pude ler, em francês arcaico ainda por cima, o legado daquele que o grande escritor tcheco Milan Kundera (que fugindo da truculência russa veio escrever em francês a maior parte de sua obra) considerou o pai do romance moderno: François Rabelais.

O que me incomoda é este esforço, mais ou menos sutil quando se está na França, mas muito evidente para o observador externo, em separar o que é autenticamente francês do que é mistura, sincretismo, produto da miscigenação e da interação cultural. Um esforço que vem acompanhado, é claro, do julgamento que considera superior aquilo que se enquadra no primeiro caso.

Para efeito de comparação, recordo um diálogo que tive com um estudante de literatura inglesa. Perguntei-lhe, tendo em mente alguns romances londrinos que viraram best-seller não apenas na terra da rainha, mas também no Brasil, quem era o melhor autor contemporâneo do Reino Unido.

“Salman Rushdie”, ele respondeu, para minha surpresa. Até então, Rushdie era para mim um autor indiano, basta ler as primeiras páginas de qualquer um de seus romances para identificar as referências à terra-mãe asiática, a influência dos mitos e dos valores da terra de Gandhi.

O terrorismo pode até ter exacerbado – e se isto ocorreu foi muito levemente – o orgulho britânico da sociedade inglesa, mas não é nada comparado à reação do ministro francês do interior, Nicolas Sarkozy, que ameaçou deportar os jovens que por cerca de um mês aterrorizaram a periferia das grandes cidades francesas, ateando fogo a carros e vandalizando locais públicos.

Deportar para onde, se são todos franceses, nascidos em solo francês de pais naturalizados franceses?

O imenso prédio do Instituto de Estudos do Mundo Árabe, com seus vitrais prateados que deixam aflorar a luz natural, parece um intruso às margens do Sena, a poucos minutos do Quartier Latin, o bairro da Sorbonne, onde no passado era comum escutar os doutos franceses conversando em Latim.

No contexto de uma relação colonial que terminou oficialmente nos anos 50, mas cujos efeitos se estenderam até há poucas décadas, os próprios cidadãos franceses eram divididos em duas categorias: os puros, que viviam na pátria-mãe, e os
pied-noirs, ou pés negros, que colonizaram as províncias no norte da África.

Felizmente ou infelizmente, o mundo mudou, os mitos são outros e o conceito de estado-nação está em crise. É impossível hoje conceber a cultura como produto de um só país ou de um só povo.

Pela manhã, tomo meu café escutando a rádio árabe que toca músicas pop e eletrônica. A locutora anuncia classificados e atende à chamada de Yacine, morador de Casablanca, no Marrocos, que pede uma cadeira de rodas. Um ouvinte oferece seus serviços de eletricista em Paris. A programação me soa quase subversiva, qual é o contraste com a França que se procura vender ao visitante.

Se no dia-a-dia é comum escutar o árabe em qualquer trem parisiense de subúrbio, por que a intelectualidade francesa insiste em ver com maus olhos este lado massivo de sua sociedade? Por que os marselheses se ofendem quando se compara sua arquitetura com a de Alger, capital da Argélia?

A perspectiva centrada no estado-nação tem ainda um efeito colateral, o vício de se utilizar a lógica marxista em todo conflito social. É uma ironia que justamente na França esta lógica não se aplique, ironia que aqui o termo chave dos conflitos seja cultura, tanto quanto ou até mais que luta de classes.

A explicação talvez esteja nas maravilhas que este mito civilizatório tão irritantemente francês produziu. De Paris, por exemplo, alguém já disse que visitá-la é uma maldição: nunca se sentirá em outro lugar tamanha emoção à primeira vista; e nunca esta emoção será tão forte em Paris quanto da primeira vez.

Se isto é verdade, não sei, sei que meus olhos marejaram às portas do teatro de la Huchette, na rua de mesmo nome, onde há quase uma década assisti pela primeira vez a uma montagem de
A Cantora Careca, de Eugène Ionesco. A senhora francesa de olhos azuis me olhava com compaixão e de seus olhos desciam umas rugas pelas maçãs do rosto até se encontrarem novamente no queixo branco, quanta emoção já não teriam testemunhado aqueles olhos?

Respondi estou bem, madame, e a senhora me sorriu complacente, entendia que não sou o primeiro nem serei o último a emocionar-se diante de alguma cena parisiense.

Caminhei pelas margens do rio Sena me sentindo um velho, sempre achei que ser tomado por lembranças fortes era coisa de quem já viveu e andou muito. Paris é um perigo, pensei. De contemplá-la, corro o risco de submeter meu coração a sobressaltos repentinos. Em pouco tempo me sairiam rugas, mas talvez em sulcos maiores e menos harmônicos que nas feições daquela senhora francesa – rugas mais acomodadas ao meu rosto nem tão branco de cidadão de sangue misto, meus olhos nem tão azuis de turista latino-americano.

(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.




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