Nhamandu
baixou na UFF
* Por
José Ribamar Bessa Freire
“Pequeno
Sol, traz tua luz e caminha, com tua sabedoria e teu eterno raio”.
“Nhamandu mirĩ / Oguerô pu’a / Ojexaka / Oguerô
guatá” . (Canto
sagrado entoado pelo coral de crianças guarani)
A
universidade está mudando? Depois de Exu baixar na Uerj, foi a vez
de Nhamandu desembarcar nessa sexta (9), em Niterói, para iluminar
as salas da Universidade Federal Fluminense (UFF) com seus raios de
luz e sua sabedoria. Os sábios guarani Karai Tataendy Oka
(Augustinho da Silva), 97 anos, e Pará Mirĩ (Marciana Oliveira), 88
anos, deram aulas como professores visitantes convidados pelo
projeto Encontro
de Saberes. O
canto sagrado do coral de crianças guarani precedeu cada aula, o que
nos fez pensar que, com cantos, aulas são mais instrutivas e, com
certeza, mais agradáveis.
O
curso ministrado na UFF no último mês foi encerrado com uma
mesa-redonda no Auditório Macunaíma, no Campus do Gragoatá, com
discurso de abertura do pró-reitor de graduação José Rodrigues e
a participação, além dos dois sábios guarani vindos da Aldeia
Araponga, Paraty (RJ), da doutora em teoria literária, Viviana
Gelado, do doutor em antropologia social, Emilio Nolasco e deste
locutor que vos fala.
Afinal,
quais foram os conhecimentos que Augustinho Tataendy e Marciana Pará
Mirĩ trouxeram da aldeia para a universidade? Como se deu esse
encontro destinado a “diminuir o abismo que separa os dois mundos:
de um lado, o acadêmico, letrado e ocidental e, de outro, o das
culturas tradicionais centrado na transmissão oral de saberes de
matrizes indígenas e africanas, acumulados durante séculos no
Brasil”.
A
ciência e a escrita
Esse
diálogo entre saberes é algo novo no Brasil. Historicamente,
durante cinco séculos, o que ocorreu foi um “encontrão”, um
choque, cujo resultado trágico foi o epistemicídio e o glotocídio,
com a negação dos conhecimentos tradicionais dos índios e o
apagamento das línguas nas quais esses saberes circulavam,
produzindo uma blindagem epistêmica que predomina até hoje.
Tudo
começou quando os portugueses desembarcaram no litoral, em 1500,
trazendo a espada, a cruz, a fome e a sífilis que – no lamento de
Pablo Neruda – “dizimavam os índios”. No entanto,
asifilização ocidental,
que tinha também seus próprios mitos, trouxe junto com eles duas
instituições respeitáveis e de prestígio ligadas ao saber – a
ciência e a escrita alfabética – que deviam, em princípio,
favorecer a libertação da espécie humana.
Acontece
que o conhecimento produzido na Europa, que era particular e datado,
foi apresentado como se fosse o “o” do borogodó e tratado como
“universal”, como “verdade única”, como "atemporal",
o que anulava saberes aqui encontrados, satanizados e discriminados
pelo colonizador como “superstição”, “lenda”, “fantasia”,
“crendice”, “atraso” e “pensamento mágico”. O que
interessa não é tanto o procedimento usado para produzir
conhecimento, mas a relação desse conhecimento com a estrutura de
poder. Para o Poder,, ciência é qualquer saber com Exército,
Marinha, Aeronáutica e Judiciário. Caso contrário, é “crendice”.
Havia
incompatibilidade entre aquilo que era ensinado nas universidades da
Europa e o que os guarani diziam há milênios e que continuam a
falar ainda hoje na Aldeia Araponga, na Serra da Bocaina. Quais são
essas “crendices”? Podemos destacar algumas para confrontá-las
com a ciência da época. Na primeira delas o personagem principal é
Nhamandu ou Kuarahy – o Sol – que o tcheramoi (sábio)
Augustinho Tataendy trouxe agora para dentro da universidade:
-
“Nhanderu Kuarahy, o Sol, fez tudo, o mato, os bichos, a roça, a
linguagem humana, tudo, tudo. Ele que fez. Sem ele, o milho não
nascia. Quando for acabar esse mundo, a primeira coisa que vai
acontecer é Kuarahy, o Sol, apagar”.
A
letra no céu e na floresta
O
sol é, assim, uma das figuras centrais mais representativas da
mitologia guarani, com poder vivificador, constituindo-se na
manifestação da Sabedoria Criadora de Nhanderu, que deixou o mundo
habitável, pronto para ser morada do ser humano. Foi o que os
guarani disseram aos missionários que chegaram aqui no séc. XVI,
com base na observação do céu e das constelações nomeadas como
constelação da anta, do veado, da ema, da cobra, da canoa, do homem
velho:
“A
letra de Nhanderu está escrita no céu e na natureza, mas é preciso
aprender a ler essa letra” –
como explicou outro sábio guarani Alcindo Moreira (Wherá
Tupã).
Essa
leitura do céu forneceu elementos ao guarani para colocar o sol como
centro do universo, afirmando o sistema heliocêntrico, ao contrário
da ciência da época, que acreditava no sistema geocêntrico. Um
século depois do desembarque dos portugueses, em 1600, o frade e
filósofo italiano Giordano Bruno foi queimado vivo na fogueira,
entre outros motivos porque mantinha a mesma convicção dos guarani.
Só depois, a ciência reconheceria a centralidade do sol. Hoje, o
que as universidades ensinam no mundo inteiro está mais próximo das
“crendices” dos guarani do que da ciência europeia medieval.
Outras
etnias deram “inteligentes
indícios de acreditar que a terra se move e que o sol está
fixo”
– conforme registraram dois grandes cientistas do séc. XIX, o
botânico Martius e o zoólogo Spix, que viajaram em 1819-1820 pelo
rio Amazonas e conversaram sobre o assunto com os índios Albano
Passé e Gregório Coeruna no alto Solimões. Nessa altura do
campeonato, até os herdeiros da Santa Inquisição já haviam
adotado o sistema heliocêntrico defendido sempre pelos índios.
A
“fantasia” do mito
No
entanto, os dois naturalistas consideraram "fantasioso" o
mito Tikuna de origem da vida, que fala de um único ser saído da
água e do qual descendem os demais. A ciência do início do séc.
XIX acreditava que o homem tinha surgido já pronto e acabado. Foi
antes de Darwin (1809-1882) e sua teoria da evolução. Por
isso, Spix e Martius desqualificaram a narrativa tikuna,
considerando-a como de “inclinação
fantástica”,
pertencente ao “reino
da fábula”
e ao “terreno
do milagroso”.
Escreveram: “o
índio conta as maiores extravagâncias”.
Hoje,
o biólogos ensinam nas universidades que toda vida existente na
terra descende de um único ancestral, de um organismo unicelular que
deu origem a todas as espécies vivas, visão mais próxima da
“extravagância” tikuna do que da ciência de Martius e Spix.
Além do caráter provisório da ciência, o fato mostra que em
nossos países "se
vê cada vez mais claro que a compreensão do mundo é muito mais
ampla que a compreensão ocidental do mundo" - como
quer Boaventura de Souza Santos, que considera a negação de outros
modos de produzir conhecimento como "epistemicídio".
Dona
Marciana, que é parteira, e o tcheramoi Augustinho trouxeram ainda a
visão dos guarani sobre corpo, espiritualidade, rituais, dança,
música, alimentação, plantas, doenças, ervas medicinais - saberes
rejeitados pelas escolas de medicina, que ficaram com a primeira
parte do que escreveu o holandês Guillerme Piso (1611-1678), mas
rejeitaram a segunda. Piso, que morou oito anos em Pernambuco como
médico particular do Príncipe Maurício de Nasau, considera os
índios como “povos
ignorantes, bárbaros, atrasados e de nenhumas letras”,
mas cai de quatro diante dos saberes tradicionais e confirma a
eficácia da medicina indígena no livro “A
história natural e médica na Índia Ocidental”,
maravilhado como os pajés evitaram que muitos soldados virassem
sacis.
“Lembro-me
que os bárbaros, nos acampamentos, por meio de gomas frescas, sucos
e bálsamos, livraram do ferro e do fogo e restabeleceram com êxito
os membros dos soldados feridos por balas de espingardas, que estavam
para ser amputados por cirurgiões europeus, lusitanos e batavos...
Na preparação, prescindem de laboratórios e, ademais, sempre tem à
mão sucos verdes e frescos de ervas...”.
Em
Manaus – nos informa a jornalista Elaíze Farias – acaba de ser
inaugurado o Centro de Medicina Indígena, onde oskumuã (pajés)
do Rio Negro “que dominam o conhecimento doBahsese vão
tratar de enfermidades a partir dos princípios contidos na flora e
na fauna e do Wetidarese(proteção)”.
Parece
que está fazendo escola o projeto do Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI),
do CNPq, concebido por José Jorge de Carvalho, da UnB, que já
abrange nove universidades brasileiras, entre as quais a UFF, cujas
portas e salas de aula começam a se abrir para sábios como Tataendy
e Pará Mirĩ.
Lévi-Strauss,
vê, sem ironias, a grandeza do Ocidente no pensamento científico,
mas chama a atenção para a função do mito na contemporaneidade e
mostra como a própria ciência produz mitos para explicar aos
não-cientistas verdades inacessíveis ao leigo - big-bang, universo
em expansão, etc. Depois de estudar mitos indígenas, o antropólogo
francês concluiu em História
de Lince que
"de
modo mais inesperado, é o diálogo com a ciência que torna o
pensamento mítico novamente atual".
P.S.
Tanto asco de Gilmar Mendes e do tal Napoleão, do tal Admar e do tal
Tarcisio não-sei-das-quantas, tanta vergonha de viver na mesma época
que Gilmar Mendes, que para renovar minhas esperanças na vida
necessito registrar que sou contemporâneo dos guarani Alcindo
Moreira Wherá Tupã e dona Rosa, Augustinho Tataendy e Marciana
Oliveira!
Referências:
1) Spix e Martius: Viagem
pelo Brasil 1817-1820.
Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp. Vol. III, pgs.95-96,
208, 303-304
2)
Guilherme Piso: História
Natural e Médica das Indias Ocidentais.
Rio. MEC/INL. 1957
3)
Levi-Strauss, C. História
de Lince. São
Paulo. Cia. Das Letras. 1993
4)
Augustinho e Marciana. Aulas ministradas na UFF. Niterói. 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário