A
ditadura ainda não é um fantasma
* Por
Urariano Mota
Na
semana passada, com o Exército nas ruas de Brasília para reprimir a
“baderna” nos protestos contra Temer, mais de uma pessoa lembrou
as imagens do golpe de 1964.
Tropas
nas ruas de Brasília provocaram lembranças da ditadura militar.
Nessa
associação entre o que foi e o presente, alguns analistas falaram
em fantasmas da ditadura que voltavam às ruas. Mas penso que não é
fantasma um regime ainda insepulto, apesar do novo tempo da
democracia que vivemos. Quero dizer, não pode estar morto esse tempo
que não foi assimilado como tragédia. Os crimes contra os direitos
humanos dessa época ainda estão impunes. E mais grave, o drama
humano dos assassinados e guerreiros não é sequer conhecido pelos
mais jovens.
Nos
limites deste espaço, divulgo um trecho do meu próximo romance “A
mais longa duração da juventude” nas linhas a seguir.
Por
que Soledad Barrett caiu no vulgaríssimo laço do Cabo Anselmo? Eu
não posso, ninguém pode escrever um teorema das relações humanas.
Para os sentimentos não há um conjunto de frases lógicas, num
crescendo que se revela ao fim um desastre. Numa tragédia, CQD, Como
Queríamos Demonstrar. Não sou mecânico ou cruel, porque falo à
luz da viva experiência. Nos anos da ditadura, os militantes mais
ardorosos queriam imprimir no coração o imediato de suas convicções
partidárias. Às vezes nem era preciso gravar a impressão do
panfleto, porque já estava inscrito. Quero dizer, havia mistura de
sentimentos, vários, dos mais piedosos da formação cristã a
palavras de ordem…
Indivíduo
fino e escorregadio, o Cabo Anselmo falou a uma repórter numa
entrevista. A jornalista de bom coração lhe fez a pergunta:
-
Você amava Soledad?
Ele
recebe a susto o golpe da pergunta e procura ganhar tempo:
-
Eu?.... Olha, é um sentimento difícil pra mim. Ela era uma pessoa
linda, poeta, falava várias línguas... O que aconteceu com ela não
foi culpa minha, entende? Foi ela quem se condenou, não fui eu. Por
mim, ela estava fora do massacre.
-
E por que você não a avisou?
-
Está louca? Eu ia ser morto se abrisse pra ela o que eu sabia.
-
Morto por quem? Por ela ou pela repressão?
-
Por ela, claro. Sol era uma pessoa muito ideológica. Cruel, com
aquela carinha de santa.
-
Ela era cruel? – a repórter pergunta tendo na lembrança a imagem
do corpo de Soledad no necrotério. – Cruel?
-
Você nem imagina do que são capazes os comunistas. Eles matam
mesmo.
-
Você está vivo.
-
Sim, só Deus sabe como. Eu fui o sorteado pra sobreviver.
A
repórter para e não quer saber se ele atribui à roleta da vida o
plano sistemático de infiltração, entrega de companheiros e
mortes. Ele, o sorteado. A ironia não deve descer a esse ponto. A
repórter se preocupa com algo para ela mais essencial.
-
Mas você amava Soledad?
-
Olha... eu amava Soledad. Mas um amor à minha maneira, entende?
-
Como assim, à sua maneira?
-
Assim... eu tinha afeição, amor por ela. Mas o amor pra mim é uma
coisa prática, entende?
-
Entendo. Sacrificar a sua vida pela amada, nunca.
-
Isso é romantismo.
-
E você se ama, Anselmo?
-
Claro. Eu sou um cara normal.
Então
Anselmo sorri com um sorriso que não ouso adjetivar. Ele poderia ter
falado: ‘Amo a mim mesmo acima de todas as coisas. Amo só e
somente a mim’, e não seria mais eloquente que a fala ‘eu sou um
cara normal’. Ao se expressar assim, ele também quis dizer: se
fizerem um matadouro, se sangrarem uma mulher feito porco, eu não
sou o porco. Esse bicho destripado não me diz respeito. Não importa
se o porco é Soledad, se lhe arrancaram o feto a porrada, não é
comigo, eu não sou a porca Soledad. Eu sou um cara normal. Eu me
amo. Eu me amo a mim mesmo, só a mim, somente a mim e a mais
ninguém. Com todas as minhas forças,
esperteza e inteligência, durmo bem, do alto do meu conforto. Porco
é quem é sangrado na tortura. Eu, coitado de mim, tenho horror à
sujeira do sangue. Eu sou um cara educado, com alma de artista, de
formação cristã, entende? Mas não sou Cristo. Nem Cristo nem
porco.
*
Escritor,
jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os
Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Pela história está mais para segunda alternativa do final.
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