quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Pagu era Patrícia Galvão

* Por Mara Narciso


“Ainda hoje o meu agradecimento ao homem que nunca me ofendeu com piedade”.


Na FLIP, Festa Literária Internacional de Paraty de 2016, a escritora homenageada foi Ana Cristina César, que, nascida em 1953, interrompeu a própria vida aos 31 anos. Foi elogiada como grande em todas as mesas de discussão. Li uma biografia e um livro dela, e vi que de fato foi precoce e avançada. Mas o que dizer do pioneirismo de quem nasceu 43 anos antes? “Elas Por Elas - Histórias de Mulheres contadas por grandes escritoras brasileiras” é uma miscelânea de épocas e estilos, e entre eles há uma carta de Pagu.

Rosa Amanda Struasz, organizadora da antologia apresenta Pagu: “Patricia nasceu em 1910. Teve iniciação sexual precoce. Aos 15 anos escandalizava a sociedade fumando na rua, falando palavrões, usando blusas transparentes e cabelos curtos eriçados. Mas foram os textos contundentes publicados à mesma época, no Brás Jornal, que chamaram a atenção da intelectualidade paulista. Militante do Partido Comunista foi a primeira mulher a ser presa no país por motivos políticos.”

Patrícia Rehder Galvão foi jornalista, tradutora, ilustradora, atriz, escritora e poeta engajada no Movimento Modernista, ativista comunista presa 23 vezes pela Polícia Política de Getúlio Vargas, também foi casada com Oswald de Andrade (1930-35) com quem teve Rudá de Andrade e com Geraldo Ferraz (1941-62) com quem teve Geraldo Galvão Ferraz. Escreveu “Parque Industrial”, “Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão”, entre outros. Na “Carta a Maú” (Trecho), da antologia “Elas por elas” Pagu debulha sentimentos numa conversa pedregosa com seu marido Geraldo. As nove páginas da narrativa forte dão ideia de quem foi aquela mulher. Pagu, por ela mesma, é contundência milimétrica, numa sinceridade rascante que atira o leitor no seio da alma dela. A habilidade dessa desbravadora em se desnudar impressiona, pois cata sensações escondidas, se submetendo a uma sessão de psicanálise à portas abertas. Sua expressividade é cristalina, sem subterfúgios, expondo experiência sensorial lúcida, cruenta e exata, algo que não se confessa nem a si mesma. Quantos hoje podem dispensar a autocensura?

“Minha insubordinação nas aulas me garantia uma roda de simpatia”. Pagu conta que pegou uma carona até o aeroclube com um homem que não era livre, ocasião em que tinha 11 anos. Provocou e aceitou a posse sexual, mesmo sabendo que desafiava a ética estabelecida. Menciona como os pais de outras meninas não queriam que se relacionasse com elas. Imaginava-se boa, mas era vista como perversa.  Os encontros sexuais clandestinos continuaram, numa entrega total, mas também houve tempo de aversão. Quando ela se descobre grávida aos 14 anos, o parceiro parte para os Estados Unidos.  Segue-se um aborto com dilacerações físicas e mentais. “Eu sempre fui sim, uma mulher-criança. Mas mulher”. Espancada em casa, precisava se casar. O pai negociou, ela aceitou, mas o pretendente morreu. Queria sair de casa, fez um contrato, pagou e conseguiu se libertar. Separado de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, desde antes já estava com Pagu e continuaram. “Eu não amava Oswald. Só afinidades destrutivas nos ligavam”. Vem uma gravidez que se perde já no fim. Depois mais outra. O relacionamento de ambos é liberal, ele tem outras mulheres e compartilha com ela, e tudo que houver deverá ser aceito com naturalidade, mas as palavras de Patrícia mostram que não é bem assim. “Havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza”.

A Wikipédia diz que Pagu publicou em jornais desde os 15 anos, sendo extravagante, num comportamento incompatível com sua família proletária, conservadora e tradicional. “O apelido Pagu surgiu de um erro do poeta modernista Raul Bopp, ao dedicar a ela, em 1928, o poema "Coco de Pagu": Pagu tem uns olhos moles/ uns olhos de fazer doer./ Bate-coco quando passa./Coração pega a bater./ Eh Pagu eh!/ Dói porque é bom de fazer doer (...)//  Bopp inventara o apelido, imaginando que seu nome fosse Patrícia Goulart e pretendendo fazer uma brincadeira com as primeiras sílabas do nome”.

Audaciosa, pioneira em quase tudo, morreu aos 52 anos em decorrência de um câncer. Sobre ela fizeram poemas, música, filme, peça de teatro, trabalhos acadêmicos e minissérie. Em “Eternamente Pagu”, filme de 1988, uma poderosa biografia com Carla Camurati no papel central, é referida pelo pai, que a ensinou a fumar, como despudorada e deletéria. Caso a roteirista e a coragem de se desnudar fossem da própria Pagu, o filme seria ainda mais intenso. Dela li apenas as nove páginas de uma carta, que me deixaram impactada. Não sei escolher-lhe um adjetivo, mas digo que Patrícia Galvão abriu caminho para que eu chegasse até aqui.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Pagu é minha conterrânea, nasceu em São João da Boa Vista. Terra de duas outras mulheres-expoentes nas artes: Orides Fonetela e Guiomar Novaes. Abraços e feliz 2017, Mara!

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  2. Agradeço a você e a Pagu. Bom ver gente como vocês, Marcelo.

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