quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Não destrua uma amizade

* Por Mara Narciso


A amizade sem laços de sangue e sem interesse sexual acontece sem marcar hora nem pedir licença. Chega sem fogos de artifício, se estabelece e vai ficando. Não junte a palavra verdadeira à amizade, pois não sendo verdadeira não é amizade. Sem datas e sem referência de quando se formaram os laços, a amizade é espontânea e desinteressada. Quando se repara, lá está ela, com fortes raízes. O querer estar junto, acolher e compartilhar são coisas de amigo. Não há rigidez numa amizade, que pode ser estreita e íntima, ou distante e formal. O regimento não estabelecido serve para todas. O bom amigo naturalmente está presente nas festas e nos pesadelos. Não cobra, porque não precisa. Mesmo quando um amigo some, o outro entende, não julga. Quer falar, quer saber, procura, sofre junto, ainda que esteja longe. O tempo faz a amizade ficar melhor, ainda que os novos amigos tragam um quê de curiosidade, surpresa e até de encantamento. Resgatar amigos desgarrados pelas circunstâncias é uma experiência motivadora, pois quem volta chega com muitos capítulos escritos, ou até um livro completo.

Amizade sincera é o que se quer, pois a sinceridade é gêmea da amizade. Divergir é normal, contudo, caso surja uma discussão fervorosa, com demanda pesada e momentos de exaltação é preciso que os dois sejam sensatos. A apuração com retorno ao tema deve ser cordial e sem pressa, porém sem esperar demais, pois a demora faz guardar maus sentimentos, com ruptura de pontes, e construção de barreiras. Isso sem efeito etílico, pois com a liberação alcoólica o desastre é maior. O limite da fala deve ser guiado pelo bom-senso. Quem se excede precisa buscar a paz. Caso não busque, por presunção, deixando que apenas o outro volte atrás, o relacionamento não é amizade, sendo parceria cujo fim não dói. Já a ruptura de amizade é semelhante ao fim de um casamento.

Muitos que se julgam bons são capazes de gestos infames que destroem qualquer amizade. A língua solta, a traição, a falsidade, a mentira e a injustiça são atitudes que impossibilitam o convívio. Algumas fraturas são irreversíveis, por isso, é preciso ser maleável enquanto houver tempo. Quando ocorre uma briga em que ambos querem ter razão a luz vermelha se acende. Ser flexível, negociador, político e até mudar de opinião são necessidades nos relacionamentos humanos. Há os que fecham portas e janelas e se apegam a certezas endurecidas. Para quem se sinta irredutível, tal loucura o levará a grandes perdas e o pirracento ficará pirraçado. Não saber voltar atrás vem de convicções geradas na juventude, mas por que não mudá-las? As questões morais podem ser pétreas, não você. Não faça das suas ideias algo dogmático. Caso insista nisso, então não reclame. Mas não se humilhe nem insista além do razoável. Isso é para os casos de namoro acabado, quando a paixão permanece num dos lados. Amizade é diferente.

Quem conta um fato da vida quer opinião, não divulgação. Um amigo entende, é solidário, diz o que pensa com educação, quer ser ouvido, mesmo sabendo que uma sugestão não é uma ordem. Conhecer pensamentos diferentes, defesas opostas, areja a mente. Visões novas podem somar e se for conveniente pode-se tirar proveito. Também se pode ignorar, docemente, alegremente.

Por óbvio, manter uma amizade é estar apto a perdoar e a pedir perdão, ter gestos de grandeza, não decepcionar, cumprindo o combinado. Amigo negocia sem traumas, mas pode ser preciso lavar as feridas, para curá-las. Romper machuca, reconciliar traz festa, e que nunca seja esquecida a gratidão. E caso inimigos aconteçam, que sejam poucos e deduzidos apenas pelo afastamento silencioso. E que os amigos vivam bastante, pois a morte de um deles é ferida difícil de cicatrizar.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


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