quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Figuras


* Por Assionara Souza


Não tive qualquer intimidade com a cantora de solos magníficos. Isso até hoje me deixa furioso. E profundamente desconsolado. Tenho medo de perder a voz. Tenho medo de não saber mais fazer coisas que faço bem desde pequeno. Concentro-me em resolver essa história para evitar problemas futuros. Não quero perder as palavras. Não quero jamais me esquecer de como se deve enrolar o pião antes de lançá-lo. Para que ele caia zuuuum. Imitando os ventos que roubou quando ainda tinha a forma de um bruxo poderoso seqüestrador de tempestades. Ela não me perdoou jamais. Eu jamais me perdoarei pelo que aconteceu.

Em tardes de inverno intenso como essa fico pensando que tudo teria sido mais fácil se eu não tivesse feito o que fiz. Mas não pude evitar. Saiu como uma rajada. Disse que não saber o tempo certo de produzir uma metáfora era o mesmo que não saber usá-la. E disse isso com raiva. Estava sentindo muita raiva quando pronunciei essa sentença. O que eu disse não foi uma metáfora. Foi um insulto.  Talvez devesse ter adotado mais brandura em minhas palavras. Deveria tê-la feito compreender que havíamos perdido tempo. Mas sei que disse. Disse que ela não tinha a menor sensibilidade para lidar com metáforas. Até esse dia em toda sua vida ela não havia sido tão humilhada. E o mais estranho é que ela se chamava Felice. Assim como Letícia ou Leda. E esses tantos nomes que nos lembram coisas como: felicidade, alegria, dança e música.         

Não se deve usar de violência para alguém de natureza musical. Os cantores entendem de metáfora sem que pensem a respeito delas. É algo que nasce como qualquer outra reação física. As metáforas saem espontâneas. Não sabem sequer se o que fizeram foi dizer uma metáfora. Mas o corpo todo se satisfaz enquanto eles estão metaforizando especialmente para um outro corpo.          

Lembro da preparação que foi quando Felice começou a se aproximar poeticamente de mim. Mas só hoje isso faz sentido. A minha presença a incomodava. Como se a fizesse cócegas e ela quisesse rir muito. E tivesse que esconder o riso como a deusa grega escondia o rosto quando tocava flauta. Suas palavras desencontravam completamente do ritmo das minhas. Aquilo era estranho. E ela fugia de perto. Eu me sentia um gato cuidando das muitas crias que eram minhas dúvidas: "Por que ela me odeia tanto? O que fiz de errado dessa vez?". Nem percebi que era a tentativa sincera de produzir metáforas que agitava o seu espírito. E a fazia fugir o olhar de mim. Uma vez ela me pareceu completamente mudada. Olhou firme em meus olhos e me disse: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". Eu sorri como quem nada quer e não querendo ou não achando que poderia querer mesmo alguma coisa. Pois bem. Não esbocei qualquer reação. O meu olhar era o mesmo de quem está no cruzamento e espera o sinal abrir. Acho que queria ir pra casa. Afinal tínhamos exercitado uma dificílima récita camoniana prontos a sairmos dali contando qualquer piada sem graça em Dolce Stil Nuovo. Eu estava cansado de poesia.          

Ao chegar sozinho em casa, ainda olhando para os vincos da minha sólida porta de madeira, ver se descobria uma imagem nova, o clarão da metáfora explodiu na segunda virada da chave. Hypocrite lecteur! O diabo me sussurrou com sua voz irônica: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". Talvez sem que eu soubesse — e eu não imaginei mesmo — aquela metáfora tenha me acompanhado todo o caminho. Como o zunido do pião depois que é lançado. Bem quieta. Vagando. Uma metáfora completa. Com o tom da voz exato. Meu corpo quase caiu ali mesmo.          

Quando dois começam a trocar metáforas, corre-se o risco de morrer afogados nas próprias palavras. É preciso ter muita paciência. O que eu podia fazer? Se era eu oficialmente aquele que conhecia bem as metáforas e o seu modo de usar. E ela foi tão sincera. Parecia que estava fazendo a Primeira Comunhão: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". Eu não tinha hóstia alguma para aquela boca aberta como um morango partido ao meio. Se ela desconfiasse de que tudo o que eu dizia era fruto do que colhia nos livros mais estranhos. Nem teria visto em mim um domador de metáforas. Agora é que tudo fazia sentido. O timbre e o peso de sua voz. Silêncios expressivos. Imagens que eu teimara em não enxergar. Olhares.                  

Caminhei pelas ruas mais sujas da cidade e a metáfora se conservava fresca e cheia de nervuras como um morango sorridente recém cortado. Eu já estava ficando, não sabia porquê, com uma espécie de ódio. Mas um ódio que me deixava entontecido. "Hoje", assim como em Ricardo III: "Agora". E caindo para um imprevisível não se sabe o quê. Todos os dias que seguiram à noite em que ela me lançou aquela metáfora, repeti cuidadosamente: "Hoje". "Hoje". "Hoje". O restante do mistério "poderia até ser" dobrava-se no desenho da curva de nível de um abismo. O "poderia" não traz efetivamente nada de especial. Mais uma forma desgastada que pode denotar preguiça. Isso se não viesse obviamente carregada com o "até". De tão parecido que estava: "poderia até ser". De tanto que era certo: "poderia até ser". Fazia tanto sentido que: "poderia até ser". Um dia de chuva e vento.         

Eu soube tudo de uma vez. Porque certamente não quis pensar. Na minha distração, não pensei que fosse possível. Não pensei. Como supor que uma luminosidade estava sendo produzida? Há quanto tempo estaria? Nem sempre o que vem em nossa direção é publicidade. Nem sempre estão só querendo nos encher de testes do tipo "Eu sei, mas duvido que você saiba". No primeiro dia em que vi Felice tive um pressentimento. Ela não me pareceu alguém que usava testes do tipo "Eu sei, mas duvido que você saiba". Vi algum mistério que eu não saberia atingir. Vi alguma violência da qual deveria me prevenir. Uma tempestade. É muito comum que poetas sintam medo. Colhemos as metáforas direto nos livros. E nos assustamos quando ela é formada dentro de um coração aberto como um morango partido ao meio. Os olhos dela me compreendendo. E o coração ansioso por escrever em palavras a sensação. No interior do corpo. As batidas empurrando o sangue para as faces: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". E eu deixei a metáfora caída no chão. Depois de um dia inteiro envolvido na cansativa tarefa de semear palavras no caos. Os outros que estavam ali, achando-se grandes poetas, pisaram a metáfora que a cantora de solos magníficos acabara de construir com todo o corpo. Lastimável.
                    
Na semana seguinte a esse acontecimento ela estava indiferente. Parecia até triste. Não tinha mais nada que me pudesse permitir arriscar uma aproximação. Então senti mais raiva ainda. E me dirigi contra ela. Como se estivesse instruindo todos ali. Não saber usar uma metáfora no tempo certo, eu quase gritei, é o mesmo que não saber usar uma metáfora. Bem no meio da cara da cantora de solos magníficos. Olhando furiosamente em seus olhos.

Ela correu dali cobrindo as faces e chorando. Aquela imagem para mim foi uma grande ironia. Nunca mais nos vimos de novo. Nunca pude conhecê-la em profundidade. A metáfora não interpretada pode gerar silêncios irreversíveis. Hoje é um dia de chuva e vento. Lembro de Felice e fico com medo de perder a voz. Não saber mais dizer uma palavra que seja.

* Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Mora em Curitiba. Leciona Literatura Brasileira e Produção Textual. É mestranda em Estudos Literários pela UFPR e estuda trânsitos entre literatura e artes plásticas na obra de Osman Lins. Em 2005, publicou o livro de contos Cecília Não é um Cachimbo, pela editora 7Letras.



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