quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

“Ninguém sabe, ninguém viu”


* Por Mara Narciso


Está tudo preparado, depois do árduo trabalho coletivo voluntário: cenário, palco (caminhão), banheiro químico, decoração, mesas espalhadas, cercadinho de cadeiras para alugar, iluminação, barracas de alimentos e bebidas (vendidas pelos moradores do local), policiamento, toldo (para uma eventual chuva), divulgação exaustiva, entrevistas, mobilização da comunidade e participação da Prefeitura. As crianças, que têm uma programação específica como informações sobre a festa momesca, bandinha, concurso de passista e fantasia, chegam felizes. O público que gosta de brincar o Carnaval vem para o IV Carnaval da Amizade do Bairro Morada do Parque, que acontece na Praça da Amizade, ao longo da Avenida A. O bairro é um lugar abençoado, onde quase todos se conhecem e são amigos, fruto também do trabalho da presidente da Associação de Moradores Leonora Aparecida Barbosa e Alves e do seu marido Josecé Alves dos Santos, que fizeram o convite. O casal faz acontecer boas coisas no bairro. Rendo-lhes festivas homenagens.

A Cemig oferece a “melhor energia do Brasil”. Isso quando oferece. Um apagão joga na escuridão, por duas horas, boa parte da cidade, inclusive a festa que começa. Vão-se embora alguns convidados, e aos que esperam é prometida a presença da banda, que, com instrumentos de sopro e percussão, dispensa energia elétrica. Então, lá vem ela, imersa no black-out, misteriosa e ritmada vence a inércia dos foliões, invade os corações e faz a festa. Iluminada por celulares, lanternas e faróis de carros, a bateria coordenada por Amaury e Jukita Queiroz traz de volta o Carnaval de antigamente. É uma festa da cidade, que acontece como numa roça. A falta de luz mostra um céu coalhado de estrelas sobre a cabeça do moderado público. Este não se faz de rogado e, deixando a moderação de lado, entra na dança e no canto. Os tímidos se desinibem favorecidos pelo véu das trevas. Fotos e filmagens são feitas e o espocar de flashes lembra que a tecnologia existe para libertar e, contraditoriamente, também para aprisionar (alguns não vêm, soube-se depois, porque não conseguiram abrir o portão eletrônico).

Incansáveis, os valorosos voluntários tocam muito e mais ainda tocam. Não se poupam, mesmo sabendo que serão quatro dias de folia. Sem perder nem ritmo, nem alegria, ligam uma música na outra, fazem aquela “paradinha” estratégica e quando a música se acelera, angariam mais foliões. Aos poucos, os presentes se organizam, fazem trenzinho, e circundam a banda, indo e vindo. É um momento de glória para o inesgotável Josecé, na sua força insuspeitada, considerando-se seu porte pequeno e magro, mas impossível de ser vergado. Não bebe, não mostra cansaço, acompanha a cena imerso em cada detalhe. Na frente, batendo freneticamente seu tarol dos tempos do Bloco Saci, o grande Josecé vence a escuridão, levando o público a se divertir. Nessa ação, ele parece dizer: a Cemig não nos dá a luz, mas temos energia para clarear todo o bairro.

O ambiente cordial, como numa grande família, favorece o andamento da festa, na qual, sem censura, cada um dança e canta como quer e consegue, envolvendo a todos, de crianças a idosos. Um menino, na sua inocência de dois anos, se tanto, com chapéu de malandro, do tipo que parte dos batuqueiros usa, encanta, tentando tocar seu pandeiro, enquanto o dono da festa se agacha e o estimula a fazer um dueto. O que fazem os foliões? Brincam e ao fim de cada etapa aplaudem os tocadores. Quem poderia imaginar um carnaval no escuro funcionar dessa maneira, sem medo? Só no Bairro Morada do Parque.

As marchinhas de carnaval são aulas de preconceito, mas todo o pecado será perdoado. O ritmo envolvente da percussão tem resposta imediata em todos. E “atrás do trio elétrico (sem eletricidade) só não vai quem já morreu”, destoa do que se vê, pois até os que já morreram pedem licença para acompanhar o ritmo e a festa, com riso e empolgação.

Como disse Karla Celene Campos, “nem o apagão consegue tirar o brilho de quem tem luz própria”. Especialmente quando estão em cena pessoas incansáveis e seus imensos trabalhos de convívio há mais de 25 anos. Só depois de duas horas de espera, ainda que a luz tenha dado o ar da sua graça por quatro vezes, chega a energia. O público aplaude com força, mas a claridade não é indispensável. O autobrilho do casal organizador explode e contagia. Todos sabem, todos veem, mesmo no escuro.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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