Mortos
* Por Emanuel Medeiros Vieira
Para todos os amigos já "encantados"
"Escrevemos cada vez mais/para um mundo cada
vez menos". (Alberto da Cunha Melo)
Eles me chamam quando a noite vai começar.
Não.
Chamam a qualquer hora.
São os meus mortos.
Querem um papo, um suco, um filé com fritas,
não, não querem ser esquecidos.
Contam comigo: modesto memorialista da tribo.
Deixaram alguma coisa - nada que seja motivo de briga na Justiça.
Muitos livros (tantos interrompidos), canetas,
papéis anotados, o projeto de uma obra pessoal, o sonho de ir a Veneza (mas
"era outra" Veneza),uma calça jeans, camisetas, cuecas, camisetas,
quase não conheciam os avanços da tecnologia, alguns tinham máquinas de
escrever, um recibo de uma lavanderia, álbum de fotografias, cais de remédios,
uma bula nunca lida.
Que mais?
Alguns tinham enxaqueca, outros padeciam de insônia,
vários tentaram mudar o mundo, sofrearam perseguições, invejas, muitos
detestavam ratos.
Tinham convicção de que, num futuro bem próximo,
poucas pessoas gostariam de ler, viciadas em engenhocas eletrônicas
Riem, pedem uma birita.
Estão mortos - irremediavelmente mortos.
Cantam, dançam.
Mas já estranhavam este mundo quando estavam aqui.
Uma enfarte, uma leucemia, uma batida de carro, um
coração que parou de bater, e velhice mesmo.
São os meus mortos.
Tinham tantos sonhos.
Tantos?
Quando eram jovens.
Depós, só queriam a amizade, a flor, morangos, a
alegria repartida.
Não, amigos, não vou
esquecer vocês, enquanto estiver aqui.
Manterei acesa a chama (que chama?), e depois de
mim?
Um menino sorri, um cão late - é um novo dia.
Relevem o sentimentalismo: fazem uma falta danada
(os meus mortos)!
E estão dentro de mim, sempre, enquanto o dia
nasce, rio por eles,
aparece o sol, e contemplo as últimas estrelas dessa
noite que já passou..
*
Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília,
autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”,
“Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que
não amava simpósios”, entre outros.
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