domingo, 19 de agosto de 2012

Sou um desastrado

* Por José Paulo Lanyi

Talvez não seja o título adequado. Penso mesmo que não. A palavra desastre significa, na origem, “má estrela”, uma alusão à sina dos desprotegidos dos deuses. Não, isso não, sou um sujeito de sorte. E distraído. Essa é a palavra. Distraído.

Não que eu seja um Mister Magoo, aquele velhinho cego do desenho que, ainda que vire o mundo de cabeça para baixo, desfila de cabeça erguida, pleno de alegrias e certezas.

Ocorre que, às vezes, me esqueço de voltar do mundo das idéias, um pampa vastíssimo, sem quinas nem degraus. Quando dou por mim, o leite está no chão.

Hoje aconteceu duas vezes. “Ah... Nada como um café com leite quente para animar o meu dia...”, sorri para mim mesmo, até que, na sala, o locutor falou mais alto, a anunciar a expectativa de um gol no jogo da Alemanha... Xícara na mão, avancei, esbaforido, e... plunct!, topei com o armário... Enquanto limpava a cozinha, me perguntava, entregue:
-Zé Paulo, por que você é tão burro? Por que você é tão burro?!

Enchi a xícara novamente. O dia tinha que começar bem, disso eu fazia questão! Refiz o trajeto para a sala, quando... Plunct!... Topei com o mesmo armário. Hahaha! Emoldurei-me de um riso nervoso e, pano e rodo para cá e para lá, pus-me a cismar... A gravidade poderia ter lá os seus caprichos, distinta no tempo e no espaço. Alguns corpos, como o meu, trabalhariam como agentes químicos de atração do solo. Devia ser isso...

Ou são corpos desastrados mesmo... Fosse eu o Isaac Newton, teria sido colhido por uma melancia na cabeça. Ou por um rinoceronte.

Distração... Uma vez, na adolescência, tirei a roupa, levantei a tampa e atirei a cueca na privada. E aquilo não era o cesto de roupa suja, como perceberia logo depois...

Poucos anos mais tarde, quando os pêlos já vicejavam, passei pasta de dente na cara. Não satisfeito, doutra feita escovei os dentes com o creme de barbear.

No trânsito, também. Sem falsa modéstia, sou bom de volante, como atestam alguns conhecidos meus, como o Schumacher e o Alonso. Mas não sou imune a sorrisos de loiras espetaculares no ponto de ônibus. Foi no tempo em que a Rebouças era uma avenida de verdade.

Trânsito parado, eu e o Fernando Mariz Masagão a contemplarmos aquela paisagem dourada. Eis que a sueca tropical sorri para o motorista. Brinco com o Fernando, cheio de soberba, e acelero, olhos todos na loira, que, divertida, testemunharia a batida no carro da frente.

Há as situações ainda mais vexatórias. Certa vez, meu pai reencontrou, num aeroporto, um professor dos tempos da Academia Militar das Agulhas Negras. O oficial era estrábico, fato que propiciara alguma diversão entre os seus alunos. Caloroso, o pai deste cronista pôs-se a saudar o antigo mestre:
- Coronel Esguelha! Como vai o senhor?

Sobreveio, em resposta, a expressão glacial do seu interlocutor. Meu pai achou melhor não consertar e saiu de fininho...

Parte das minhas presepadas credito ao hábito de falar com as mãos. Não tenho sangue italiano, mas um estranho amálgama de húngaro, português, francês, indígena e africano. Um brasileiro típico, portanto. Nada de italiano. Mas falo e me pareço com um. Dizem os esotéricos que fui romano em outras vidas. Pode ser isso. Resta saber se eu batia na traseira de outras bigas, ou derrubava trigo no chão das tendas. Ou combatia o exército errado. Ou, em lugar do bom veneno conspiratório, todo o sabor do autêntico vinho da Aquitânia.

Disso nada sei, possivelmente nunca saberei. Por ora, contento-me em andar como um homo sapiens. Espinha ereta e, com alguma freqüência, pano e rodo nas mãos.

 
(*) José Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea “Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos” (no prelo), todos da editora O Artífice. Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica”.

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