quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ou dá ou desce – III

* Por Fernando Barreto

Capítulo 3- Academia do Barro Marrom

Brito morava no último andar de seu prédio, o décimo sexto. Gostava de deixar a TV ligada no canal que filmava a portaria de seu prédio. Costumava se referir àquele canal como TV POVINHO. Gostava de ver seus vizinhos entrando e saindo do prédio enquanto podia sentir-se isolado deles. O áudio não podia ser captado, mas as imagens eram suficientes para que concluísse que não tinha nenhum tipo de vínculo afetivo com aquela que era sua vizinhança desde criança. Gostava de algumas comodidades relativas à localização de seu apartamento, nada além disso. Se fosse por outras razões, teria ido embora dali sem olhar para trás.

Quase sempre que pegava o elevador para descer ao térreo, mesmo de madrugada, a probabilidade de o elevador parar em alguns dos quinze andares abaixo antes de chegar ao térreo era grande. Ele havia se habituado a descer pela escada. Por ali também podiam surgir inconvenientes. Um dos mais comuns se dava quando Brito ouvia o barulho da porta de algum apartamento se abrindo um ou dois andares abaixo daquele em que estava. Em algumas dessas ocasiões a pessoa que abriu a porta estava apenas entrando ou saindo do apartamento, mas em muitas outras vezes a pessoa em questão ía colocar o lixo para fora e invariavelmente se deparava com Brito descendo rapidamente e se assustava de uma maneira bisonha. Em algumas dessas ocasiões a coisa era engraçada, mas na maioria das vezes era constrangedora. Pelo menos por duas vezes ao longo de cada semana Brito ouvia coisas como 'Que susto, meu filho!!!'. Isso muitas vezes era mais desagradável do que encontrar um morador no elevador, digamos, no décimo quarto andar, com a garantia de que a viagem seria longa até o térreo, principalmente por causa do efeito da maconha, que somada á companhia indesejável dava a impressão de que a viagem era mais demorada.

E então ali estava Brito com um velho senhor conservador e Brito não está muito à vontade. Esse velho e anti-séptico senhor vai puxar conversa, porque afinal de contas é um morador antigo do prédio e conhece Brito desde que ele era um garotinho irrequieto, que sabia que já odiava sua vizinhança, mas que não tinha como direcionar aquele sentimento em ações práticas e nem transformá-lo em palavras. Um não gostava do outro, mas Brito podia argumentar para si mesmo que ele procurava evitar a interação e que por isso era melhor como humano do que aquele velho senhor. E antes que o elevador chegue ao térreo ele pararia em outro andar para recolher mais um morador ou moradora, que saberia que Brito fumou maconha porque sentiria a marofa em sua roupa ou porque Brito não era fã de colírios e saía com os olhos vermelhos. Havia o dentista que parecia o Richard Carpenter, extremamente conservador quando o assunto era relacionado a valores familiares e morais. Ele morava no terceiro andar, mas preferia esperar que o elevador descesse do último andar para buscá-lo do que descer três andares de escada. Em meio a esse tipo de encontro, Brito parecia ser sempre o único a não se sentir confortável, seguro ou tranquilo. Era sempre o único que parecia não se importar se nunca mais visse qualquer uma daquelas pessoas que viviam fisicamente tão próximas dele.

Naquele período o condomínio havia trocado o zelador. Haviam substituído Seu Augusto, um senhor distinto que trabalhava ali havia 16 anos. Quem ficou em seu lugar foi Cleitom, um carioca bem mais jovem e descontraído. Era um tanto abusado. Seu Augusto tinha classe e sabia lidar com Brito e com os outros moradores. Isso rendia uma série de benefícios a todos. Mas eis que num dia Seu Augusto se aposentou e Cleitom entrou em seu lugar, rapidamente se tornando íntimo de Britão, e com muita carioquice, logo teve para si um panorama do que era a vida naquele prédio. Mulato claro de estatura mediana e bastante magro e com óculos com armação redonda de arame, parecia muito com o Escadinha.

Enquanto Brito procurava não dar confiança para que Cleitom criasse intimidade, Britão conversava com ele diariamente, às gargalhadas, falando sobre moradoras do prédio, sobre futebol e sobre assuntos do condomínio. Quando Cleitom passou a se sentir familiarizado com São Paulo e com os moradores do prédio, passou a tratar Brito como sendo parecido com seu pai, alguém disposto a interagir aleatoriamente, o que era um equívoco e tanto. Cleitom exagerava nas brincadeiras e se atirava numa intimidade que nunca teria. Isso causava chateação em Brito, que atribuía tal comportamento não somente à falta de classe, mas à burrice do sujeito. Era o tipo de situação que provavelmente só poderia ser resolvida com uma conversa, e a princípio isso era tudo que Brito queria evitar. Esse tipo de conversa para remediar algo que não tem cura, como era a falta de classe de gente que exagera na irreverência, sempre causava mal estar e deixava sequelas no ambiente. A imposição de Cleitom por sociabilidade teria como resposta a resistência de Brito, que por sua vez iria impor a antissociabilidade.

Só o tempo poderia neutralizar as investidas de Cleitom, que quase clamava por intimidade. Uma coisa que deixava Brito realmente intrigado era o fato de Cleitom não agir da mesma forma com outros moradores do prédio. Alguns desses moradores visivelmente permaneciam distantes das abordagens irreverentes de Cleitom, e aparentemente não precisavam fazer qualquer esforço para que isso fosse possível. Cleitom tinha a vantagem de ter acesso à sala onde os monitores exibiam o que as câmeras filmavam. Brito sempre se mostrava imóvel e impassível quando estava sendo filmado no elevador, enquanto outros moradores faziam todo tipo de cena, desde coçarem órgãos genitais até fumarem escondidos em áreas do prédio onde isso era proibido.

As abordagens de Cleitom eram feitas a Brito começando sempre pelo jargão 'fala, pessoa !!!'. Brito entrava ou saía do prédio e sabia que iria ouvir de Cleitom: "Fala, pessoa !!!'. Um paulista azedo e ranzinza sendo chamado de 'pessoa' por um carioca irreverente. Às vezes era até engraçado, dependendo do humor de Brito, mas geralmente soava como provocação gratuita. Era difícil para ele entender o porque de ter sido escolhido.

O perfil desses moradores daquele prédio era genérico. Era um grupo homogêneo típico de classe média. Pessoas cinzentas que têm como maior medo o de perder tudo e não ter mais onde morar. Vidas metódicas que funcionavam com a regularidade de um relógio. Tinham seus empregos e suas famílias e eram apáticos e letárgicos para todas as outras funções vitais. Havia muitos exemplares humanos daqueles que realmente são inconvenientes em todas as ocasiões em que surgem. No décimo segundo andar do prédio, ocupando o apartamento virado para o portão da rua, viviam duas mulheres, mãe e filha. A filha, Joice, era uma quase cinquentona ainda boa de corpo que desde que concluiu a faculdade tinha um escritório de contabilidade. Solteira e boa gente, ela abriu mão de constituir uma família própria para que pudesse se dedicar exclusivamente a cuidar da mãe e de seu escritório. Era velha demais para que algum homem que a interessasse se interessasse por ela, e jovem o suficiente para que sofresse assédio sexual de velhos caquéticos que deveriam estar fazendo companhia à sua mãe.

A velha, Dona Dalva, era jogo duríssimo. Tinha 91 anos e havia passado os últimos 15 vivendo de um vago sopro de energia vital, mas que não se esgotava definitivamente. Tinha sérios problemas respiratórios e há muito não saía de casa. A partir dos 88 anos passou a usar permanentemente um tubo de oxigênio para respirar. Deslocava-se no máximo até o corredor de seu andar no prédio. Esse era um dos pólos que a velhinha podia alcançar. O outro era a sacada do apartamento, de onde via diariamente o mesmo pandemônio que alimentava a paranóia de Brito. Olhava para a rua e sabia que só passaria por ali de novo quando estivesse indo para a cova. Toda terça-feira e todo sábado a velha e sua filha Joice esperavam pela entrega de mais oxigênio. Um caminhão fazia a entrega de tubos cheios e levava embora os vazios.

Dona Dalva era completamente alucinada por causa da falta real de contato com o mundo exterior e a consequente solidão e tédio. Era de se esperar que àquela altura da vida já não fosse mais conseguir aproveitar a parte boa dessa situação. Vivia ralhando por qualquer razão: os cachorros dos vizinhos, as faxineiras do prédio, crianças que brincavam no corredor. A única coisa que a infeliz ainda tinha condições de fazer era acumular amargura e rancor, sem jamais canalizá-los adequadamente. Depois de mais de nove décadas de vida essa pobre criatura tinha como certo o fato de que jamais seria lembrada por quem quer que fosse, a não ser por sua filha, que mesmo assim se sentiria aliviada quando ela partisse. Não era do tipo que deixaria saudades por coisas belas que fazia em vida, como cookies de aveia com pedaços de chocolate meio amargo, ou por tocar boas canções ao piano ou mesmo por criar gatos.

Quando Brito tinha quinze anos e a velhinha ainda não estava tão decrépita, pôde ouvi-la dizer a uma vizinha: 'Meu marido era um homem-galo. Quando trepava comigo era pra gozar logo e dormir ou voltar pra bebida. A bebida sempre falou mais alto. Eu estou enlouquecendo porque não sei se devo aconselhar minha filha a tentar arrumar um homem que preste ou se é melhor deixá-los de lado. É ruim com eles, é péssimo sem eles, e são todos uns vigaristas. Eu sei que ela precisa foder, e por isso sempre digo a ela que nessas horas o melhor é pegar um garotão, e levá-lo ao motel e foder bastante. Nunca trazê-lo pra casa. É preciso voltar pra casa com a cabeça no lugar.'

Definitivamente a privacidade não é algo que existe de fato nesses prédios de apartamentos, e por isso pessoas reclusas e reservadas como Brito sofriam mais que as outras. Havia pessoas que ao contrário de Brito gostavam do contato social e às vezes faziam de propósito com que suas saídas de seus apartamentos ocasionassem encontros com outros moradores. Muitas vezes Brito voltava para casa vindo da Paulista durante a noite, quando o movimento estava quase encerrado e havia um carro com os faróis acesos em frente ao seu prédio. E Brito sabia que se tratava de alguma garota do prédio sendo bolinada por algum cara. E quando Brito chega ao portão do prédio, a porta do carro se abre e a tal garota sai. Elas sempre precisam sair do carro desses sujeitos bem a tempo de subir o elevador com Brito. As coincidências desse tipo pareciam sempre acontecer em momentos inoportunos e não havia muito o que Brito pudesse fazer. E ele estava geralmente cheirando a bebida e maconha e sem vontade ou motivo para conversar. E geralmente não havia mesmo conversa alguma. Apenas aquela sensação de ter o efeito da maconha cortado abruptamente.

Já mencionamos anteriormente que o pai de Brito havia sido síndico. Era conhecido como Britão e sua administração durou dois anos. Não chegava a ser um mau sujeito, mas não primava pela discrição. Era uma espécie de Brian Ferry, mas nada elegante. Falava alto, era sociável, dava gargalhadas altas, debatia sobre gastos e necessidades do condomínio com outros moradores. Como também já foi mencionado anteriormente, Britão vivia de renda por causa dos rendimentos da venda de imóveis da família anos antes. Pai e filho tinham enfoques diferentes na vida e somente com o passar de muitos anos conseguiram um certo equilíbrio na relação. Esse equilíbrio era calcado no fato de que Brito não havia realmente saído de casa, mas ao mesmo tempo, pelo menos tecnicamente, morava em outra casa, por serem vizinhos de andar. Sendo assim, Brito conseguia viver sem ter um emprego e Britão conseguia se distrair com atividades relacionadas à conservação do lugar em que vivia.

Numa ocasião Brito chegou a seu prédio e ainda na parte descoberta da entrada viu seu pai conversando com uma vizinha. Brito sabia que seria terrível subir com os dois no mesmo elevador e assim que entrou no hall ouviu o que Britão dizia á tal vizinha: 'Ah, minha senhora, hoje sou um homem aposentado, mas não é por invalidez!!!' , e caiu numa gargalha da histérica, que foi interrompida quando viu o filho se aproximando. Brito não podia acreditar no que tinha visto e ouvido, e em seguida Britão disse à vizinha: 'Esse é meu herdeiro!!'

O constrangimento diminuiu um pouco quando a mulher desceu no nono andar e os dois seguiram sozinhos e em silêncio no cubículo até o décimo sexto andar, quando se despediram secamente e entraram cada um em seu apartamento. Não havia como controlar o comportamento do velho. As tentativas de Brito de fazê-lo agir com um pouco mais de categoria e ser menos desajeitado socialmente gerou uma série de atritos ao longo de sua vida. Seu pai não conseguia admitir a hipótese de ter atingido uma idade matura e precisar seguir conselhos de seu filho sobre como agir. Afinal era ele quem pagava as contas e dava vida boa para a família. A ignorância de quem quer que fosse nunca primou pela modéstia. Isso se aplicava à família de Brito e ao próprio conceito que eles tinham do que deveria ser uma família.

Quando Brito entrava ou saía de seu apartamento, seus pais podiam ouvir o barulho da porta. Do apartamento vizinho também era perceptível a seus pais a chegada de visitas no apartamento de Brito, especialmente se fossem visitas barulhentas. Tanto as visitas mais barulhentas como as mais discretas sempre falavam no corredor quando chegavam. Nunca esperavam para entrar no apartamento. Como a variedade de pessoas que Brito levava para casa era pequena, seus pais quase sempre podiam saber quem estava chegando.

Talvez a visita mais barulhenta que Brito se permitia receber fosse a de Vânia, a irmã de Galvão, sobre a qual falamos brevemente no começo dessa história. A mulata jovem, bonita, alegre e engraçada, mas muito brava quando algo ou alguém a tirava do sério. Com Vânia por perto Brito, se sentia mais à vontade do que com a maioria das pessoas que conhecia. Muitas vezes Brito bebia bastante quando a encontrava e isso às vezes o tornava um cara sentimental demais e em outras vezes isso fazia dele um homem com pensamentos bestiais.

Vânia não tinha muitas esperanças de um relacionamento tão sério com Brito, embora gostasse de estar com ele, pois podia se manter afastada por algum tempo da vida atribulada que levava. Ela sabia que Brito repudiava a falta de sossego na vida e tentava aprender algumas coisas com a convivência com o rapaz. Ela tinha apenas 21 anos mas era um mulherão. Gostava das músicas que ouvia na casa de Brito. Sempre que ela elogiava a sequência de músicas que ele escolhia para fumarem maconha, beber ou trepar, ele dizia: 'Ah, minha filha... se eu tivesse um emprego, talvez fosse o de programador musical de uma emissora indie. Eu faria uma mistura perfeita entre as músicas velhas e as novas. Como não tenho programa de rádio, você é praticamente a única pessoa que ouve as de ontem e as de hoje na mistura musical da minha cabeça.'

Quando bebia, Brito também costumava dizer a Vânia que tinha por ideal 'uma vida mais bêbada e inconsequente'. Ela invariavelmente respondia que repudiava a ideia de se envolver com um bêbado vagabundo com quase 40 anos de idade. Numa dessas ocasiões em que tarde da noite Brito já tinha quase liquidado uma garrafa de uísque e estava imprestável de tão bêbado, seu pai bateu á sua porta para anunciar que tinha voltado de um show com a mãe de Brito. Vânia havia atendido. O velho Britão também estava um pouco embriagado e contava aos berros como tinha sido espetacular um show de uma banda cover dos Bee Gees enquanto olhava a espetacularidade do corpo de Vânia. Brito ouvia aquilo e por causa da embriaguez não conseguia saber ao certo se se tratava de um pesadelo grotesco ou se seu pai tinha perdido definitivamente o juízo.
- Meu Deus, você pagou caro pra ver banda cover dos Bee Gees? Podia ter ido a uma churrascaria! Várias delas têm bandas cover de Bee Gees... – disse Brito ao pai.
- Porra, mas essa era uma banda australiana incrível!! Se você fechasse os olhos podia jurar que aqueles falsetes eram feitos pelos integrantes originais!! – disse Britão.
- Isso é uma picaretagem caça-níqueis! – disse Brito
- O que você entende de música, moleque? Eu vivi a época de ouro da música, inclusive do Rock! – disse Britão.
- E hoje você acha que uma banda cover dos Bee Gees é algo fascinante... – disse Brito.



Leia o quarto capítulo deste conto na edição de amanhã.

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