sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ou dá ou desce – V

* Por Fernando Barreto

Capítulo 5- The Power Guido

Quando voltou para casa naquela noite, Brito não estava tão bêbado. O conserto em seu banheiro tinha sido efetuado com sucesso. O conhaque tinha sido dividido por três caras que gostavam de bebida e por isso a quantidade de álcool ingerida até então tinha sido insuficiente para que a embriaguez de Brito chegasse ao ponto em que ele se considerava satisfeito. Brito tinha pego um cartão de Dema, com seu endereço e o número do telefone fixo e o do celular. Dema morava no centro da cidade, na Rua do Boticário. É uma viela imunda, cheia de nóias, próxima ao Largo do Paissandu.

No cartão dizia que Dema tinha um grande catálogo de rock e música em geral e que gravava cds piratas com encartes fiéis aos originais. Saber que aquele sujeito era eunuco fazia com que Brito se sentisse na obrigação de rever certas coisas em sua vida, especialmente aqueles setores em que se considerava infeliz, ou pelo menos, insatisfeito. Seu ego era tão colossal que esmagava a sua razão. Tinha passado uma tarde na companhia de outros dois homens que lhe expuseram suas agonias e seus pesares e que continuavam vivos.

Brito pensou que Guido talvez ainda estivesse com vontade de beber depois que os três se despediram. Só depois é que pensou que Guido não tinha nem ao menos onde dormir. Brito então serviu-se de um copo grande de uísque com uma pedra de gelo. Ainda estava chocado com as revelações de Dema sobre a castração e a saqueira. Foi tomar o primeiro gole em sua sacada e olhou para baixo, Guido não estava lá. Um motoqueiro entregador de pizzas passou pela rua. Brito deixou o copo no chão da sacada, entrou no apartamento, pediu pelo telefone uma pizza de aliche e uma de provolone. Acendeu um cigarro e voltou para o uísque na sacada. Terminada a dose ele pensou que mais um pouco de uísque seria o suficiente para que ficasse bêbado e realmente com fome, e quando terminasse de beber a pizza chegaria, o que de fato aconteceu e então o dia terminou sem mais desdobramentos.

Eram dez horas e quarenta e três minutos no relógio do microondas de Brito quando ele acordou na manhã seguinte e havia muita pizza para o café da manhã. Não havia reformas para serem feitas em seu banheiro. Ele liquidou a pizza e começou a ouvir os discos que tinha comprado de Dema. O plano era ficar à toa ouvindo aquele material para em seguida guardar os discos que ainda não tinha e em seguida separar os repetidos e dar início às negociações pela internet, visando vender os álbuns que ele já tinha. Na verdade Brito venderia as edições que ele já tinha em casa, pois os discos repetidos que comprara de Dema eram edições importadas, melhores e mais caprichadas.

Parecia ser um bom dia para não beber e não sair de casa. Seria bom ouvir música e fumar maconha. Quando Brito terminou de comer a pizza do dia anterior era quase meio dia e só teve fome de novo quando eram sete da noite, quando finalmente comeu sanduíches de atum com fatias de provolone e uma goiaba vermelha.depois de ter fumado alguns baseados nesse intervalo, além de ter feito barras e flexões e também de ter se masturbado. A leveza dos bagos era a receita contra a melancolia causada pela solidão. Brito não sofria dessa melancolia. Via e ouvia tanta gente reclamar da solidão que se sentia ainda mais deslocado socialmente.

Naquela noite Brito enviou um email a Dema pedindo que lhe fosse enviada a lista de discos que podiam ser copiados em CD com o encarte fiel ao original. Fez o pedido porque queria prestigiar o trabalho do novo amigo. Talvez houvesse naquela lista algum álbum que Brito não tivesse ouvido, mas que já tivesse ouvido falar. Afinal são muitos os discos que são comentados demais pelos especialistas e ouvidos de menos por todos. Enviou a Dema alguns arquivos antigos que tinha guardado de sua antiga revista PORRITE, e no dia seguinte recebeu como resposta a tal lista de discos e também a manifestação do interesse de Dema em relançar os exemplares antigos da revista e elaborar novas edições. Combinaram por email de se encontrarem no apartamento de Dema.na noite seguinte ao email de resposta de Dema, Poderiam então conversar novamente e tomar cerveja enquanto Dema trabalhava na confecção de CD's piratas anteriormente encomendados por seus clientes.

Na Avenida Ipiranga havia um estacionamento bem na esquina com a Rua do Boticário, onde Dema morava. Brito deixou seu carro no estacionamento e procurou pelo prédio de Dema. Vestia uma camiseta do Juventus da Mooca, calça jeans e all star azul escuro de cano baixo. O local sempre parecia um circo de horrores, especialmente quando escurecia, mas Brito já sabia disso. Como andava naturalmente despojado não se preocupou. Os nóias que não estavam empenhados em suas cachimbadas se deslocavam debilmente e mancando muito atrás da próxima pedra. Chegou ao prédio de Dema, que ficava do outro lado da Avenida Ipiranga sem ser tão importunado pelos nóias.O prédio era um meio termo entre cortiço e edifício residencial. Parecia haver todo tipo de gente vivendo ali. Resquícios de estrutura familiar padrão diluída numa bruma de agonia, abandono e desespero. O interfone na parte externa não estava funcionando e no instante em que surgiu senhora que possivelmente morava ali com sacolas de supermercado tentando abrir a porta do prédio, Brito a ajudou e aproveitou e perguntou a ela se conhecia Dema. "Ah, sim, jovem... Conheço o Dema há mais de 20 anos. Quando vim pra cá ele já morava aqui com a mulher dele. Você também é roqueiro, né? Entre comigo que te mostro onde ele mora."

Brito e a velha senhora subiram dois lances de escada. Cada andar tinha dez apartamentos cujas portas alinhavam-se apenas do lado direito do corredor que começava ao final de cada lance de escada. A velha senhora agradeceu pelo fato de Brito tê-la ajudado a carregar as sacolas quando chegaram ao número 23, que era o apartamento dela, que indicou o apartamento 28 como sendo o de Dema. Despediram-se brevemente, Brito agradeceu pela informação e foi até a porta de número 28 e tocou a campainha.
- Mas que grande satisfação tê-lo aqui, meu caro! Frequentando o centro sujo da cidade, não é? Não se preocupe com esses nóias, porque na volta eu te escolto até uma avenida segura! – disse Dema ao abrir a porta.

Dali Brito pôde ver a mulher que supôs ser a esposa de Dema. Era uma mulher muito hippie, com cerca de 40 anos, morena, magra, cabelos lisos muito pretos e compridos. Muito quieta e serena, pediu que Brito não reparasse na bagunça. Ela estava sentada no chão e recortava encartes de CD's piratas e os colocava nas caixinhas. Dema os apresentou e contou a ela superficialmente a forma como conheceu Brito. O nome da esposa de Dema era Joice. Extremamente simpática e educada, pediu que Brito deixasse sua mochila no sofá de dois lugares cujo forro imitava couro preto. Brito não conseguiu deixar de pensar nas modalidades sexuais alternativas às quais eles tinham que recorrer pelo fato de Dema ser eunuco. O apartamento era uma quitinete com cerca de 30 metros quadrados cuja janela para a rua se estendia por entre as duas paredes laterais. Essa janela era virada para a Rua do Boticário e podia se ouvir nitidamente o movimento dos nóias. Sentia-se o cheiro das pedras de crack sendo queimadas ali embaixo.

Brito pôde constatar que Dema estava com a mesma roupa que vestia na ocasião em que se conheceram. Ou talvez Dema tivesse dentro do seu armário várias camisas pretas de seda iguais. Dema abriu a geladeira alcançou uma cerveja long neck para ele e outra para Brito, que abriu sua garrafinha e dirigiu-se para a janela, da qual já estava a poucos metros. O acender contínuo dos isqueiros para se queimar as pedras de crack cerca de dez metros abaixo proporcionava um show de pirotecnia que naquele momento parecia ser equivalente a um show do Kiss. Dema então comentou:
- A cidade está infestada de nóias, meu amigo. Moro aqui desde 1983, numa época em que o centro já era decadente, mas o crack ainda não tinha feito tanto estrago. Muitos desses garotos que estão aí fumando pedra moram aqui mesmo pela região desde que nasceram. Alguns aqui nesse prédio. De vez em quando entram drogados aqui e cagam no corredor, causando um dano terrível. Deixam barradas colossais. Outros desses vieram pra viver na rua e ter acesso às pedras. Nós tentamos nos adaptar da melhor maneira. O centro inteiro já está repleto de nóias. Até mesmo na Santa Cecília e Higienópolis que são partes mais burguesas do centro. Aqui é meio baixo astral, eu sei. Vamos sair um pouco. Tenho um vizinho que você precisa conhecer. O nome dele é Djalma. – disse Dema com seu dente frontal superior mole e solitário balançando a cada palavra dita, para a alegria de Brito.

Antes de saírem, Brito pediu a Dema para usar o banheiro. Precisava urinar e já tinha deduzido que a única porta fechada naquele pequeno apartamento, que ficava muito próxima da porta de entrada, era o banheiro. Brito foi alertado por Dema para que não apertasse a descarga, porque isso faria com que ela disparasse e não parasse mais. Brito urinava e pensava que depois Dema ou Joice jogariam baldes d'água na privada para que a descarga não disparasse.

Joice ficou em casa terminando seu trabalho. Dema e Brito saíram em meio aos nóias. Andaram por cinco quarteirões até a rua Vitória, entre as ruas Guaianazes e Conselheiro Nébias. Na parte térrea do prédio de Djalma funcionava uma academia de musculação. Dema conhecia o porteiro. Conversou brevemente com ele enquanto esperava pelo elevador. O porteiro apenas confirmou que Djalma estava em casa e que eles podiam subir. O elevador era um velho modelo Atlas. Subiram até o quinto andar. Havia oito apartamentos em cada andar. Djalma morava no 504. Do corredor podiam ouvir um certo agito vindo lá de dentro.

Djalma era um sujeito de 41 anos, mas assim como Brito, aparentava ter menos idade. Não era alto. tinha um metro e setenta de altura e era magro mas com músculos salientes e definidos.Tinha um cabelo castanho claro , liso e comprido até os ombros. Era uma cabeleira vasta e bem cuidada, com alguns fios brancos começando a surgir. Usava uma camiseta regata preta e aparentemente não tinha tatuagens. Quando Djalma atendeu à campainha, deu um abraço em Dema, cumprimentou Brito com um aperto de mão e disse aos dois que estava se divertindo. O apartamento de Djalma tinha cerca de cem metros quadrados divididos entre uma sala, um quarto, um banheiro e uma cozinha. Havia uma certa rotatividade de pessoas na festa, mas com uma média constante de quinze pessoas. Algumas pessoas saíam e logo voltavam com mais latas de cerveja.

Trouxemos uísque, cocaína, maconha, cerveja... O único problema até agora foi com aquele cretino desmaiado no sofá. Não aguenta beber e faz esse papel ridículo na frente das meninas... – disse Djalma apontando para o sofá onde Braga estava deitado todo vomitado e quase dormindo.

Braga gemia algumas palavras que não podiam ser compreendidas. Haviam maquiado o infeliz com batom e jogado o que parecia ser serragem para que seu vômito grudasse. Por um instante Brito chegou a sentir certa compaixão de Braga, quase ao mesmo tempo em que soube que Dema também já o conhecia.
- Ah, é o Braga! Esse rapaz é um idiota! É um paspalho! Já o conhecia de outras festas aqui mesmo. Ele gostaria de poder estar onipresente. Não há nada que ele não faça pra chamar a atenção. Ele nunca conseguiu o respeito de ninguém. Esse cretino é blogueiro! Olhe, Brito, nós somos da velha escola, precisamos retomar a produção da sua antiga revista! É preciso fazer oposição a esse tipo de gente com a máxima urgência! Eu tenho um livro pronto que está na gaveta! Chama-se 'O LIVRO DOS FILHOS DA PUTA'. Fique tranquilo que não se trata de um livro de poesia. É qualquer coisa menos isso, Eu estava esperando um momento oportuno pra lançar, e hoje esse material está mais atual do que na época em que foi escrito! Eu considero que tanto a sua revista como o meu livro são pedidos de socorro! – disse Dema.
- Vamos lançar seu livro sim! Já que você falou nisso, devo dizer que por ironia do destino eu parei com a revista justamente por causa dos blogueiros... Esse engajamento mala me enoja de uma forma tão pesada que não consigo nem enfatizar o desespero que eu sentia quando essa gente começou a despontar na internet. E se eles acharem que estamos falando mal da inclusão digital e do direito de expressão, ouviremos ladainhas e certamente surgirá uma rodinha de violão com a música do Geraldo Vandré sendo cantada em coro.. – disse Brito.
- Descobri recentemente que o Guido é um poeta incrível, totalmente contrário a essa bundice mole desses poetinhas de internet que escrevem sobre borboletas campestres e passarinhos e flores. Poderíamos fazer uma coletânea do Guido no embalo dos nossos relançamentos. Ele rima Denise com marquise, rima Deise com rio laser e o contexto geral é sempre cafajeste e extremamente incorreto politicamente. Seria mais um reforço pra combater a frouxidão dos blogueiros juvenis. A urgência que esses moleques idiotas têm de impor a própria burrice em blogs com atualizações diárias me deixa nervoso. O Braga representa toda essa geração. A única razão pela qual eu ainda não dei na cara dele tem a ver com o fato de que toda vez que o encontro ele está sendo ridículo por iniciativa própria. E também tem a ver com o fato de ser apenas um moleque frouxo e bunda mole. Às vezes eu quase sinto pena, mas ele merece ser essa figura patética mesmo – disse Dema.
- Essa geração bunda mole existe porque esses moleques foram criados com mertiolate que não arde e com toddy de morango. Esses pequenos insetos foram criados com tv a cabo e são adeptos do politicamente correto. Eu odeio muito essa juventude... – disse Brito.

Brito não disse a ninguém que o conhecia, mas gostou de ver através de outras pessoas o reconhecimento pela paspalhotice de Braga quando a fagulha de compaixão que chegou a sentir por ele desapareceu. Agora ele parecia ainda mais ridículo do que antes. De uma certa forma Braga conseguiu a onipresença que parecia buscar. Ele estava onde Brito não imaginou que ele fosse estar, e num momento em que Brito já tinha esquecido dele. Mas Braga falhou em todo o resto. Seria fácil se o garoto quisesse ser ele mesmo. A sensação íntima de sermos o que somos não é algo que pode ser mudado.

Havia na festa um sujeito que só tinha o tronco e a cabeça. Não tinha pernas nem braços, e uma garota ruiva ajudava-o a fumar cigarro e baseado, tomar cerveja e ir ao banheiro, empurrando a cadeira de rodas do cara. A garota ruiva era belíssima. Uma beleza sensual e delicada ao mesmo tempo. Magra mas com seios grandes para seu porte físico. Tinha um metro e sessenta e cinco de altura e cerca de 52 quilos. Apenas uma tatuagem cujo desenho era uma cereja estava visível sob a alça esquerda do sutiã preto, que surgia debaixo de uma camiseta regata também preta com a estampa do disco 'Cure for Pain', do Morphine. A garota tinha um cheiro delicioso que lembrava iogurte.

Brito ficou ali por duas horas. Conversou com Djalma, que lhe contou sobre o fato de estar se despedindo do centro da cidade. Mudaria para o bairro da Saúde, porque sua namorada de longa data ficou grávida. A mãe de Djalma gostava da garota e da idéia de ser avó, então convenceu-os de se mudarem para uma casa que ela tinha alugado e cujo contrato do aluguel havia terminado, sem que houvesse interesse do inquilino em renovar. Braga não havia aprendido isso. Não haveria de aprender tão cedo, afinal não sabia que Brito o tinha visto naquela situação ridícula. Braga talvez deixasse de lado aquele grupo de amigos do centro por causa da vergonha, mas para ele Brito não esteve lá. Sendo assim, Braga poderia ressurgir a qualquer momento, e estaria ainda mais confuso.

Djalma, Dema e Brito conversaram e beberam até Brito sentir cansaço e uma embriaguez comprometedora para dirigir de volta pra casa. Saiu dali acompanhado de Dema, que já cambaleava, mas que estava perto de sua casa.

Leia o sexto capítulo deste conto na edição de amanhã.


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