Arte vivida
* Por Pedro J. Bondaczuk
Há várias formas de se apreciar uma obra de arte (qualquer que seja a sua natureza), que não se limite, apenas, ao mero olhar (atento ou não) do espectador, na apreciação de uma pintura ou escultura; na audição de uma composição musical; ou na apreciação passiva de uma exibição de balé, entre outras. Em cada um desses casos, apenas um ou dois dos cinco sentidos são acionados: ou a vista ou o ouvido ou ambos.
Há tempos, porém, artistas sumamente criativos tentam, e com inegável êxito, estabelecer integração completa das várias (virtualmente de todas) as manifestações artísticas, simultaneamente, através de performances, que nem sempre são devidamente entendidas pelo público (e já não digo o leigo, que não as entende, de fato, mas até de especialistas). Na Bienal de São Paulo, por exemplo, esse tipo de provocação ao potencial consumidor de arte já se tornou bastante comum, diria, até, corriqueiro, de uma edição para outra.
O que os performistas buscam, em suas não raro exóticas exibições, é envolver todos os cinco sentidos na apreciação de determinada obra. “O olfato também?”, perguntará, espantado, o leitor. “Também!”, respondo, já que recentemente li que um artista japonês conseguiu, mediante mistura peculiar de tintas e perfumes, dar “cheiro” de plantas e de flores às suas pinturas. Como se vê, não falta mais nada.
Estas considerações vêm a propósito de uma inesquecível e memorável performance artístico-cultural promovida pelo artista plástico José Luís Piassa, em 26 de agosto de 2005, em Campinas. O evento destinou-se a marcar a inauguração oficial do Ponto de Cultura Cinema em Palavras da cidade e contou com a decisiva participação de deficientes visuais, usuários do Centro Cultural Louis Braille.
Os convidados para essa apresentação não tinham a menor suspeita do teste a que seriam submetidos. Acreditavam que iriam apreciar a uma exposição de arte convencional de Piassa. Achavam que toda aquela pompa destinava-se, apenas, à exibição do mais recente totem elaborado pelo artista, ou coordenado por ele, já que se tratou de obra coletiva, que contou com a participação de deficientes visuais, membros da comunidade.
Em princípio, houve uma grande frustração dos presentes, daqueles que tinham visão normal, assim que a função começou. Muitos ensaiaram, até, uma estratégica retirada, mal-disfarçando a decepção, sem terem a menor noção do que estaria por acontecer. Tudo isso porque, assim que o artista retirou, com pompa e circunstância – não sem antes fazer um certo suspense – o pano branco que cobria o totem, os presentes puderam ver, apenas, um enorme tubo preto e nada mais. Fez-se, no recinto, um grande burburinho. Uns achavam que se tratava de empulhação, outros garantiam que tudo não passava de uma grande brincadeira do artista, uma espécie de pegadinha. Todos, como veremos, estavam equivocados.
Nem bem os rumores diminuíram (sem cessar por completo) porém, os convidados foram surpreendidos com uma algaravia de sons, misturados e confusos (toques de buzina, barulho de carros acelerando, sinos, flautas, violão, violinos e gritos, muitos gritos), vindos de toda a parte, causando uma confusão sensorial que fez os presentes perderem a noção do que ocorria ao redor.
E, enquanto todos tentavam entender, em meio a tantas informações sensoriais, notadamente auditivas, o que estava ocorrendo, Piassa e os outros performistas deficientes visuais rompiam a atadura negra que vedava as cores e os desenhos e traziam à luz, finalmente, todas as informações contidas no magnífico totem. E não houve quem não se encantasse, não só com esse trabalho artístico, mas com toda a experiência de que foram protagonistas. Os presentes entenderam, finalmente, que, muitas vezes, dependendo das circunstâncias, os sentidos podem se embaralhar e nos enganar a respeito do que vemos e/ou ouvimos.
O pergaminho filosófico-cultural inaugurado, na oportunidade, no Centro Cultural Louis Braille (e que ali vai permanecer como um monumento desse Ponto de Cultura), consiste de mãos, de vários tamanhos, cores e formatos, dispostas de forma artística e original, impressas em uma estrutura de PVC por deficientes visuais de baixa renda da região metropolitana de Campinas.
Piassa explica o que pretendeu provar com a performance: “A tentativa era levar todos a uma cegueira temporária, em que o estímulo visual não correspondesse ao que as pessoas estivessem vendo, mas que desencadeasse outros estímulos sensoriais para se localizar e obter as respostas. Creio ter alcançado o objetivo”. E, em conversa com os convidados, concluí que o alcançou, de fato.
Porém, a declaração mais emblemática, que define a caráter não apenas essa performance, mas o silêncio dos meios de comunicação quanto à atuação de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura, no primeiro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi a do secretário de Programas e Projetos Culturais, Célio Turino, que afirmou: “Cegos não são os jovens que estavam ali, mas sim aqueles que não querem ver o que está sendo feito no Brasil e nos Pontos de Cultura”. Eu diria que, além de cegos, são derrotistas e preconceituosos, que detestam tudo o que lembre povo. É possível, diante do que se observa nos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão, de contestar essa afirmação? Claro que não! E olhem que até que o secretário foi extremamente polido nessa observação.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
* Por Pedro J. Bondaczuk
Há várias formas de se apreciar uma obra de arte (qualquer que seja a sua natureza), que não se limite, apenas, ao mero olhar (atento ou não) do espectador, na apreciação de uma pintura ou escultura; na audição de uma composição musical; ou na apreciação passiva de uma exibição de balé, entre outras. Em cada um desses casos, apenas um ou dois dos cinco sentidos são acionados: ou a vista ou o ouvido ou ambos.
Há tempos, porém, artistas sumamente criativos tentam, e com inegável êxito, estabelecer integração completa das várias (virtualmente de todas) as manifestações artísticas, simultaneamente, através de performances, que nem sempre são devidamente entendidas pelo público (e já não digo o leigo, que não as entende, de fato, mas até de especialistas). Na Bienal de São Paulo, por exemplo, esse tipo de provocação ao potencial consumidor de arte já se tornou bastante comum, diria, até, corriqueiro, de uma edição para outra.
O que os performistas buscam, em suas não raro exóticas exibições, é envolver todos os cinco sentidos na apreciação de determinada obra. “O olfato também?”, perguntará, espantado, o leitor. “Também!”, respondo, já que recentemente li que um artista japonês conseguiu, mediante mistura peculiar de tintas e perfumes, dar “cheiro” de plantas e de flores às suas pinturas. Como se vê, não falta mais nada.
Estas considerações vêm a propósito de uma inesquecível e memorável performance artístico-cultural promovida pelo artista plástico José Luís Piassa, em 26 de agosto de 2005, em Campinas. O evento destinou-se a marcar a inauguração oficial do Ponto de Cultura Cinema em Palavras da cidade e contou com a decisiva participação de deficientes visuais, usuários do Centro Cultural Louis Braille.
Os convidados para essa apresentação não tinham a menor suspeita do teste a que seriam submetidos. Acreditavam que iriam apreciar a uma exposição de arte convencional de Piassa. Achavam que toda aquela pompa destinava-se, apenas, à exibição do mais recente totem elaborado pelo artista, ou coordenado por ele, já que se tratou de obra coletiva, que contou com a participação de deficientes visuais, membros da comunidade.
Em princípio, houve uma grande frustração dos presentes, daqueles que tinham visão normal, assim que a função começou. Muitos ensaiaram, até, uma estratégica retirada, mal-disfarçando a decepção, sem terem a menor noção do que estaria por acontecer. Tudo isso porque, assim que o artista retirou, com pompa e circunstância – não sem antes fazer um certo suspense – o pano branco que cobria o totem, os presentes puderam ver, apenas, um enorme tubo preto e nada mais. Fez-se, no recinto, um grande burburinho. Uns achavam que se tratava de empulhação, outros garantiam que tudo não passava de uma grande brincadeira do artista, uma espécie de pegadinha. Todos, como veremos, estavam equivocados.
Nem bem os rumores diminuíram (sem cessar por completo) porém, os convidados foram surpreendidos com uma algaravia de sons, misturados e confusos (toques de buzina, barulho de carros acelerando, sinos, flautas, violão, violinos e gritos, muitos gritos), vindos de toda a parte, causando uma confusão sensorial que fez os presentes perderem a noção do que ocorria ao redor.
E, enquanto todos tentavam entender, em meio a tantas informações sensoriais, notadamente auditivas, o que estava ocorrendo, Piassa e os outros performistas deficientes visuais rompiam a atadura negra que vedava as cores e os desenhos e traziam à luz, finalmente, todas as informações contidas no magnífico totem. E não houve quem não se encantasse, não só com esse trabalho artístico, mas com toda a experiência de que foram protagonistas. Os presentes entenderam, finalmente, que, muitas vezes, dependendo das circunstâncias, os sentidos podem se embaralhar e nos enganar a respeito do que vemos e/ou ouvimos.
O pergaminho filosófico-cultural inaugurado, na oportunidade, no Centro Cultural Louis Braille (e que ali vai permanecer como um monumento desse Ponto de Cultura), consiste de mãos, de vários tamanhos, cores e formatos, dispostas de forma artística e original, impressas em uma estrutura de PVC por deficientes visuais de baixa renda da região metropolitana de Campinas.
Piassa explica o que pretendeu provar com a performance: “A tentativa era levar todos a uma cegueira temporária, em que o estímulo visual não correspondesse ao que as pessoas estivessem vendo, mas que desencadeasse outros estímulos sensoriais para se localizar e obter as respostas. Creio ter alcançado o objetivo”. E, em conversa com os convidados, concluí que o alcançou, de fato.
Porém, a declaração mais emblemática, que define a caráter não apenas essa performance, mas o silêncio dos meios de comunicação quanto à atuação de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura, no primeiro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi a do secretário de Programas e Projetos Culturais, Célio Turino, que afirmou: “Cegos não são os jovens que estavam ali, mas sim aqueles que não querem ver o que está sendo feito no Brasil e nos Pontos de Cultura”. Eu diria que, além de cegos, são derrotistas e preconceituosos, que detestam tudo o que lembre povo. É possível, diante do que se observa nos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão, de contestar essa afirmação? Claro que não! E olhem que até que o secretário foi extremamente polido nessa observação.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Uma bela metáfora, fico aqui na torcida para que todos tenham alcançado a mensagem, infelizmente
ResponderExcluirpara alguns é mais cômodo continuarem cegos.
Abraços