
* Por Clara dos Anjos
Joana era moça faceira, pouco letrada para o gosto da gente deslumbrada, que chegava da cidade e pendurava nas paredes das casas humildes, os diplomas de “doutor”. De dia, perambulava pela pequena cidade, saias longas, pés acomodados numa sandália simples, de tiras finas, delicadas. A roupa era quase sempre branca, quando muito, um rastro de tom pastel, para aliviar o calor da cidadezinha, e dela, souberam muito tempo depois. Cobria os braços longos com blusas de mangas, feitas pela sua mãe, com cortes de fazenda que encomendava da cidade grande. Trabalhava o mês inteirinho na floricultura de Dona Ornela.
O progresso timidamente se instalara ali, com a chegada da floricultura, da sorveteria, e do armarinho do seu Joaquim, que agora, modernizado, vendia livros e revistas trazidos da capital. Joana foi bater à porta da dona Ornela, e candidamente lhe convenceu que poderia fazer o serviço de entrega, reservado apenas aos homens. Dona Ornela deu-lhe o emprego.
As encomendas cresceram, o faturamento aumentou. Joana começava de dia e largava o serviço à noite, mais por insistência da patroa. No meio do caminho, quando a sede apertava, parava para tomar uma laranjada na venda do seu Cosme. Os rapazes bem apessoados faziam daquele lugar o ponto de encontro para a boa prosa, regada a bebida leve e o torresminho, que o sovina do seu Cosme oferecia como cortesia e embutia no preço da bebida.
Joana chegava e os rapazes silenciavam. Sua presença de moça delicada e firme exigia respeito. Ela não era como as outras moças que tinham medo de entrar ali. Entrava, tomava sua laranjada e saía, deixando no ar o perfume de jasmim. Muitas entregas ainda. Os moradores da cidade gostavam das flores de dona Ornela e todo dia, compravam um punhado delas, para enfeitar suas casas. Os galantes rapazes mandavam flores às moças, com um pedido de namoro. Aquele comércio servia a todos.
Fim do mês. Joana recebe seus trocados e parte para encontrar Jairo, motorista da marinete, que chegava à cidade trazendo suas encomendas. Quando a porta se abre, desce um homem esguio, meio barbado, carregando uma mala de boa qualidade. Os olhos fitam os de Joana. Ela, de pele clara, sente o sangue quente subir e corar a sua face. Murmura um pedido de licença, chega ao motorista, recolhe suas encomendas e com passos largos e rápidos ruma para casa.
Chega e entra no quarto misterioso, de onde sai muitas horas depois, com olhos ainda inchados, indicando que chorara. Pessoa alguma entrava ali no seu recanto. Até aquele dia, ninguém tivera notícia de Joana com homem algum. Trabalhava feliz, cantarolando, exceto quando um ar melancólico e distante, logo disfarçado, perpassava aqueles olhos amendoados. Passando pela praça, pulava amarelinha com as crianças, mas não dava confiança aos rapazes da sua cidade. Pra uns era metida, pra outros, tímida.
Joana vai até a venda. Sente calor e quer tomar uma laranjada. Mal chega à porta e percebe a presença do moço da marinete. Sente-se tonta. O moço percebendo, vem ao seu encontro, e amparando o seu corpo quase desfalecido, oferece um lenço. Joana, sentindo o cheiro de jasmim, recobra a consciência, e desta vez, fita os olhos tristes, acastanhados, quase verdes, do homem que a toma nos braços. Uma lágrima, uma só, escorre pela sua face. Não pode ser ele, pensa a moça. Então, ele existe?
O homem insiste em conduzi-la até sua casa. Apesar dos protestos, consegue convencê-la. Joana morava com os pais. Naquele dia, eles não estavam em casa. Foram visitar a filha mais velha que morava numa chácara perto da cidade, e dormiriam por lá. Francisco, o moço que a conduzia, não se fez de rogado e entrou com ela, em casa. Não trocaram uma palavra no meio do caminho. De braços dados chegaram ali, em silêncio, guiados pelo brilho das estrelas.
Quando Joana abriu a porta do quarto, fez menção de barrá-lo, mas ele não obedeceu. Caminhou até um criado, onde se via um caderno, um lápis, e um vaso simples, com algumas flores de jasmim. Abriu o caderno. Na capa interna, viu colado o seu rosto, numa foto amarelada, de vinte anos atrás. Não mudara muito. Conservara a barba, agora com fios brancos. Foto tirada para ilustrar uma entrevista que dera à época, para uma revista direcionada a sua área de atuação, na cidade natal, capital do estado.
Joana era ainda uma menina quando viu a revista, trazida por alguém que visitava a cidade. Recortou a foto que cheirava a jasmim, e guardou num caderno que alguém lhe dera como presente. Nele, escrevia seus poemas, singelos, de rimas pobres, inspirados pela foto de um homem que não sabia existir. Cresceu e foi trabalhar vendendo flores para sentir o perfume que nunca a abandonara.
Nenhum homem a fizera corar até aquele dia, 31 de agosto, fim do desgosto para tantos, para ela, o despertar de uma vida. Guardara seus encantos, não por achar que os homens da pequena cidade não a mereciam. Guardara, por amor ao amor. Amava sem saber, obedecia ao coração. Francisco viajara ao interior por recomendação médica. Deveria escolher um lugar calmo, acolhedor, para se tratar de uma enfermidade.
Na cidade, o médico lhe dera dois anos de vida, na cidadezinha, teria chance de esticar mais uns dois. Já não queria tanto, tinha vivido o suficiente e se gabava de viver no lucro. Fora um botânico de sucesso. Escolheu estudar as plantas quando a moda era estudar medicina. Sentia-se realizado profissionalmente. Tivera esposa e filho, como também era comum nos anos de sua juventude, muito embora não tivesse conhecido o amor. Amor de homem e mulher. Paixão. Ali, naquele quarto, iluminado pela lua, deu três passos e acolheu nos braços a doce e decidida Joana, agora mais bonita, com olhos castanhos fulgurantes, realçados pelo brilho da lua.
Passados mais 20 anos, Francisco só saiu da cidade uma única vez, para assistir às pompas fúnebres do médico que lhe dera 2 anos de vida. Em agradecimento levou à sepultura um ramo de jasmim, comprado na floricultura que agora pertencia à sua mulher, Joana. “Mulher sim, esposa não”, dizia ela, que não se casara formalmente com Francisco.
Escolheram viver o amor em sua plenitude, como eternos namorados. “Poetas e botânicos não se rendem ao casamento. É uma maneira de cultivar o amor, e compor versos,” completava. Joana não era poeta de Academia, não sonhava conquistar uma cadeira, receber prêmios. Fazia versos unicamente para o seu amor, agora real.
*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas.
Joana era moça faceira, pouco letrada para o gosto da gente deslumbrada, que chegava da cidade e pendurava nas paredes das casas humildes, os diplomas de “doutor”. De dia, perambulava pela pequena cidade, saias longas, pés acomodados numa sandália simples, de tiras finas, delicadas. A roupa era quase sempre branca, quando muito, um rastro de tom pastel, para aliviar o calor da cidadezinha, e dela, souberam muito tempo depois. Cobria os braços longos com blusas de mangas, feitas pela sua mãe, com cortes de fazenda que encomendava da cidade grande. Trabalhava o mês inteirinho na floricultura de Dona Ornela.
O progresso timidamente se instalara ali, com a chegada da floricultura, da sorveteria, e do armarinho do seu Joaquim, que agora, modernizado, vendia livros e revistas trazidos da capital. Joana foi bater à porta da dona Ornela, e candidamente lhe convenceu que poderia fazer o serviço de entrega, reservado apenas aos homens. Dona Ornela deu-lhe o emprego.
As encomendas cresceram, o faturamento aumentou. Joana começava de dia e largava o serviço à noite, mais por insistência da patroa. No meio do caminho, quando a sede apertava, parava para tomar uma laranjada na venda do seu Cosme. Os rapazes bem apessoados faziam daquele lugar o ponto de encontro para a boa prosa, regada a bebida leve e o torresminho, que o sovina do seu Cosme oferecia como cortesia e embutia no preço da bebida.
Joana chegava e os rapazes silenciavam. Sua presença de moça delicada e firme exigia respeito. Ela não era como as outras moças que tinham medo de entrar ali. Entrava, tomava sua laranjada e saía, deixando no ar o perfume de jasmim. Muitas entregas ainda. Os moradores da cidade gostavam das flores de dona Ornela e todo dia, compravam um punhado delas, para enfeitar suas casas. Os galantes rapazes mandavam flores às moças, com um pedido de namoro. Aquele comércio servia a todos.
Fim do mês. Joana recebe seus trocados e parte para encontrar Jairo, motorista da marinete, que chegava à cidade trazendo suas encomendas. Quando a porta se abre, desce um homem esguio, meio barbado, carregando uma mala de boa qualidade. Os olhos fitam os de Joana. Ela, de pele clara, sente o sangue quente subir e corar a sua face. Murmura um pedido de licença, chega ao motorista, recolhe suas encomendas e com passos largos e rápidos ruma para casa.
Chega e entra no quarto misterioso, de onde sai muitas horas depois, com olhos ainda inchados, indicando que chorara. Pessoa alguma entrava ali no seu recanto. Até aquele dia, ninguém tivera notícia de Joana com homem algum. Trabalhava feliz, cantarolando, exceto quando um ar melancólico e distante, logo disfarçado, perpassava aqueles olhos amendoados. Passando pela praça, pulava amarelinha com as crianças, mas não dava confiança aos rapazes da sua cidade. Pra uns era metida, pra outros, tímida.
Joana vai até a venda. Sente calor e quer tomar uma laranjada. Mal chega à porta e percebe a presença do moço da marinete. Sente-se tonta. O moço percebendo, vem ao seu encontro, e amparando o seu corpo quase desfalecido, oferece um lenço. Joana, sentindo o cheiro de jasmim, recobra a consciência, e desta vez, fita os olhos tristes, acastanhados, quase verdes, do homem que a toma nos braços. Uma lágrima, uma só, escorre pela sua face. Não pode ser ele, pensa a moça. Então, ele existe?
O homem insiste em conduzi-la até sua casa. Apesar dos protestos, consegue convencê-la. Joana morava com os pais. Naquele dia, eles não estavam em casa. Foram visitar a filha mais velha que morava numa chácara perto da cidade, e dormiriam por lá. Francisco, o moço que a conduzia, não se fez de rogado e entrou com ela, em casa. Não trocaram uma palavra no meio do caminho. De braços dados chegaram ali, em silêncio, guiados pelo brilho das estrelas.
Quando Joana abriu a porta do quarto, fez menção de barrá-lo, mas ele não obedeceu. Caminhou até um criado, onde se via um caderno, um lápis, e um vaso simples, com algumas flores de jasmim. Abriu o caderno. Na capa interna, viu colado o seu rosto, numa foto amarelada, de vinte anos atrás. Não mudara muito. Conservara a barba, agora com fios brancos. Foto tirada para ilustrar uma entrevista que dera à época, para uma revista direcionada a sua área de atuação, na cidade natal, capital do estado.
Joana era ainda uma menina quando viu a revista, trazida por alguém que visitava a cidade. Recortou a foto que cheirava a jasmim, e guardou num caderno que alguém lhe dera como presente. Nele, escrevia seus poemas, singelos, de rimas pobres, inspirados pela foto de um homem que não sabia existir. Cresceu e foi trabalhar vendendo flores para sentir o perfume que nunca a abandonara.
Nenhum homem a fizera corar até aquele dia, 31 de agosto, fim do desgosto para tantos, para ela, o despertar de uma vida. Guardara seus encantos, não por achar que os homens da pequena cidade não a mereciam. Guardara, por amor ao amor. Amava sem saber, obedecia ao coração. Francisco viajara ao interior por recomendação médica. Deveria escolher um lugar calmo, acolhedor, para se tratar de uma enfermidade.
Na cidade, o médico lhe dera dois anos de vida, na cidadezinha, teria chance de esticar mais uns dois. Já não queria tanto, tinha vivido o suficiente e se gabava de viver no lucro. Fora um botânico de sucesso. Escolheu estudar as plantas quando a moda era estudar medicina. Sentia-se realizado profissionalmente. Tivera esposa e filho, como também era comum nos anos de sua juventude, muito embora não tivesse conhecido o amor. Amor de homem e mulher. Paixão. Ali, naquele quarto, iluminado pela lua, deu três passos e acolheu nos braços a doce e decidida Joana, agora mais bonita, com olhos castanhos fulgurantes, realçados pelo brilho da lua.
Passados mais 20 anos, Francisco só saiu da cidade uma única vez, para assistir às pompas fúnebres do médico que lhe dera 2 anos de vida. Em agradecimento levou à sepultura um ramo de jasmim, comprado na floricultura que agora pertencia à sua mulher, Joana. “Mulher sim, esposa não”, dizia ela, que não se casara formalmente com Francisco.
Escolheram viver o amor em sua plenitude, como eternos namorados. “Poetas e botânicos não se rendem ao casamento. É uma maneira de cultivar o amor, e compor versos,” completava. Joana não era poeta de Academia, não sonhava conquistar uma cadeira, receber prêmios. Fazia versos unicamente para o seu amor, agora real.
*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas.
Clara, também estou em Montes Claros. Prazer em conhecê-la, e ainda mais através da história da Joana e Francisco. Lembra um pouco " Nunca te vi, sempre te amei". Belo enredo de um amor impossível, possível, com direito a trilha odorífica. Eu, de minha parte reencontrei um amor de 34 anos antes. Sei o que isso significa.
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