quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Politicamente correto


* Por Hilton Gorresen


O velhinho acordou de bom humor e começou a cantarolar uma musiquinha de seus velhos carnavais:

“Tava jogando sinuca, uma nega maluca me apareceu
vinha com um filho no colo e dizia pro povo que o filho era meu...”.

– Credo, vô! – disse a neta universitária. Que preconceito é esse contra a pobre afrodescendente? O vô pode ser processado.
– É isso mesmo – concluiu o neto mais novo – fica melhor “afrodescendente psicologicamente afetada”.
– Então tá, me deixem cantar:

“Tava jogando sinuca, uma afrodescendente psicologicamente afetada me apareceu...”.

– E se essa nega malu...digo afrodescendente for menor de idade? Aí a coisa vai complicar.
– Pode deixar. Ela não é de menor, é uma balzaquiana. Uma mulher de mais de trinta anos. O nome vem de um romance de Balzac.
– Além do mais – completou o neto – isso é uma cena de dramalhão mexicano. A mulher aos prantos com o filho no colo, acusando o malvado vilão. Quem sabe ela somente trouxesse a certidão de nascimento?
– Tá bom, se vocês querem assim:

“Tava jogando sinuca, uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada, me apareceu
tava com uma certidão de nascimento no colo e dizia pro povo que o filho era meu...”.

--Tá bom assim?

A neta torceu o nariz e falou: esse negócio de jogar sinuca não fica bem. Dá impressão que o vô não tem nada pra fazer. Fica ali com um cigarro na boca, empurrando umas bolinhas na caçapa. É melhor uma coisa mais moderna, malhação numa academia.
– Bóóó! – exclamou o neto. Academia é coisa pra modelos e aquelas que dizem que são modelos. Fica melhor “praticando um esporte”.
– Então vamos ver:

“Tava praticando um esporte, uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada me apareceu
vinha com uma certidão de nascimento no colo e dizia pro povo...”.

– Pensando bem, disse a neta, hoje não se pode procurar diretamente o transgressor. Vocês viram o que aconteceu com a namorada daquele goleiro. Seria melhor procurar antes um advogado. Aí o advogado mandaria um funcionário de seu escritório entregar uma notificação.

E o avô, com cara desanimada:

“Tava praticando um esporte e o funcionário do escritório do advogado de uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada me apareceu
trazia uma notificação, com uma certidão de nascimento anexa no colo, e dizia pro povo que o filho era meu...”.

-- Tá bom assim?

– Acho que não. Seria melhor o advogado encaminhar a notificação pelo correio.
– Já percebi – exclamou o velhinho – vocês querem é estragar a música.

CRÔNICA PUBLICADA NO LIVRO "QUANDO MINHA AVÓ TIRAVA A ROUPA".

* Escritor catarinense, autor de seis livros: cinco de crônicas e um de memórias.


Nenhum comentário:

Postar um comentário