Politicamente correto
* Por
Hilton Gorresen
O velhinho acordou de
bom humor e começou a cantarolar uma musiquinha de seus velhos carnavais:
“Tava
jogando sinuca, uma nega maluca me apareceu
vinha
com um filho no colo e dizia pro povo que o filho era meu...”.
– Credo, vô! – disse a
neta universitária. Que preconceito é esse contra a pobre afrodescendente? O vô
pode ser processado.
– É isso mesmo –
concluiu o neto mais novo – fica melhor “afrodescendente psicologicamente
afetada”.
– Então tá, me deixem
cantar:
“Tava
jogando sinuca, uma afrodescendente psicologicamente afetada me apareceu...”.
– E se essa nega
malu...digo afrodescendente for menor de idade? Aí a coisa vai complicar.
– Pode deixar. Ela não
é de menor, é uma balzaquiana. Uma mulher de mais de trinta anos. O nome vem de
um romance de Balzac.
– Além do mais –
completou o neto – isso é uma cena de dramalhão mexicano. A mulher aos prantos
com o filho no colo, acusando o malvado vilão. Quem sabe ela somente trouxesse
a certidão de nascimento?
– Tá bom, se vocês
querem assim:
“Tava
jogando sinuca, uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada, me
apareceu
tava
com uma certidão de nascimento no colo e dizia pro povo que o filho era
meu...”.
--Tá bom assim?
A neta torceu o nariz
e falou: esse negócio de jogar sinuca não fica bem. Dá impressão que o vô não
tem nada pra fazer. Fica ali com um cigarro na boca, empurrando umas bolinhas
na caçapa. É melhor uma coisa mais moderna, malhação numa academia.
– Bóóó! – exclamou o
neto. Academia é coisa pra modelos e aquelas que dizem que são modelos. Fica
melhor “praticando um esporte”.
– Então vamos ver:
“Tava
praticando um esporte, uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente
afetada me apareceu
vinha
com uma certidão de nascimento no colo e dizia pro povo...”.
– Pensando bem, disse
a neta, hoje não se pode procurar diretamente o transgressor. Vocês viram o que
aconteceu com a namorada daquele goleiro. Seria melhor procurar antes um
advogado. Aí o advogado mandaria um funcionário de seu escritório entregar uma notificação.
E o avô, com cara
desanimada:
“Tava
praticando um esporte e o funcionário do escritório do advogado de uma
afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada me apareceu
trazia
uma notificação, com uma certidão de nascimento anexa no colo, e dizia pro povo
que o filho era meu...”.
-- Tá bom assim?
– Acho que não. Seria
melhor o advogado encaminhar a notificação pelo correio.
– Já percebi –
exclamou o velhinho – vocês querem é estragar a música.
CRÔNICA PUBLICADA NO
LIVRO "QUANDO MINHA AVÓ TIRAVA A ROUPA".
*
Escritor catarinense, autor de seis livros: cinco de crônicas e um de memórias.
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