terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Águas de presságio



O poeta português Fernando Pessoa, com sua enorme sensibilidade e reconhecido talento, nos ensina, num determinado texto (dos tantos que nos legou): "A poesia encontra-se em todas as coisas – na terra e no mar, no lago e na margem do rio”. Ou seja, encontramo-la, “também”, na água, bastando procurá-la e, posteriormente, transmiti-la. Eu diria: há poesia principalmente nesse incrível e vital líquido. E por que particularizo essa substância, sem desprezar, todavia, as demais? Porque sem ela, não haveria vida. Não, pelo menos, como a conhecemos. Chega a ser redundante afirmar que a água é essencial para todo e qualquer ser vivo, animal e/ou vegetal (pelo menos dos conhecidos, supondo que haja outros, diferentes dos da Terra, em outras partes do universo que a mim parece ser infinito, ao contrário do que asseguram os doutos físicos, do alto de suas teorias). Se há tanta poesia, sobretudo na água, por que há tão poucos poemas celebrando esse mágico e essencial líquido? Convenhamos, trata-se de um tema pouco explorado por poetas quer do presente, quer do passado.

Tenho em mãos, porém, uma jóia literária, uma preciosidade editorial, que é o livro “Águas de presságio”, da poetisa Sarah de Oliveira Passarella – que tive o privilégio e a honra de prefaciar –  tratando, liricamente, com sensibilidade e inteligência, exatamente desse tema, como o próprio título já sugere. Tão logo recebi o convite da autora para redigir o prefácio, mergulhei de cabeça nos originais dos 47 poemas que o compõem, para redigi-lo com conhecimento de causa.  E, à medida que ia lendo cada uma das peças literárias que o compõem, meu encantamento só crescia, exponencialmente, assim como minha responsabilidade em apresentar a obra ao leitor. São 87 páginas de poesia pura, dessas de tirar o fôlego dos amantes do gênero. Temo, todavia, que meu texto de apresentação tenha ficado aquém do real valor do livro, embora eu tenha posto nele o máximo de emoção. Fiquei sabendo, depois, que com essa obra, antes dela ser impressa e publicada, Sarah obteve o primeiro lugar no “46º Concurso Nacional de Contos e Poesia de 2015”, promovido pela Academia de Letras e Artes de Araguari. Pudera! Com todo o respeito aos demais concorrentes, não havia como “Águas de presságio” deixar de ganhar.    

Caso tivesse que explicar tamanho entusiasmo com o teor do livro, recorreria, novamente, a Fernando Pessoa, quando afirmou: “É que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito, diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando". Os versos mágicos de Sarah têm essa característica. Ou seja, causam “espanto e admiração” ao privilegiado leitor que tem acesso a eles.

Acompanhem meu raciocínio. Nosso Planeta, pelas substâncias de que é formado, convenhamos, tem nome inadequado: Terra! Deveria chamar-se, logicamente, "Água"! Afinal, dois terços de sua superfície são formados por essa incrível substância, produto de dois elementos que, isoladamente, são dos mais abundantes no universo, encontrados            como gases que, no entanto, assume (pelo menos na Terra) as três formas da natureza, dependendo das condições de temperatura: sólida, líquida ou gasosa. O terço restante do Planeta, é 24% inabitável, constituído de regiões rochosas e desertos arenosos, bem como de solos cobertos de gelo. Desse terço, portanto, restam apenas 76% de solos utilizáveis para o homem habitar, construir cidades, arar e semear e assim obter os alimentos necessários à sobrevivência. A Terra tem, para que vocês tenham uma idéia da sua inadequação de nome, estimados um sextilhão e quatrocentos e trinta quintilhões de quilos de água! Ou seja, um vírgula quarenta e três vezes dez elevado à vigésima primeira potência de quilos. Nesta altura vocês, certamente, deverão estar espantados quando se diz que essa substância pode vir a faltar algum dia, diante dessa colossal quantidade. É muita coisa, não é mesmo?! Será que os ecologistas não estão vendo fantasmas? Não estaria havendo um falso e desnecessário alarmismo? Não seria uma manifestação histérica e sem sentido? O que vocês acham?

Frise-se que dessa enorme quantidade de água, 97,4% estão nos oceanos. É, portanto, imprópria para o consumo de animais e vegetais da superfície terrestre (só as espécies marinhas se beneficiam dessa monumental reserva), a menos que seja dessalinizada, para que possa ser usada para beber, irrigar lavouras ou para propósitos industriais, processo, aliás, caríssimo e inviável para a grande, esmagadora maioria dos povos. A parte “potável” é de apenas 2,6%, incluindo, aí, as geleiras das calotas polares e os lençóis subterrâneos. Assim sendo, se fôssemos analisar todos os seres vivos do mundo e chegássemos a uma conclusão média, provavelmente encontraríamos um resultado não muito diferente deste: 80% de água e 20% de substâncias secas (inclusive em nosso organismo). O que é o processo de envelhecimento humano senão a perda de líquidos no corpo? Pode-se dizer, grosso modo, que "envelhecer é secar", daí a necessidade que os idosos têm de ingestão de água em quantidade maior do que, digamos,  uma pessoa de 18 ou de 30 anos.

Voltando à obra de Sarah de Oliveira Passarella, observei, em determinado trecho do meu prefácio: “Curioso de se notar é o fato de, apesar do título do livro (‘Águas de presságio’) se referir ao mais precioso líquido que há para nós, humanos (indispensável, aliás, a qualquer espécie de vida, como a conhecemos), a despeito dessa substância se fazer onipresente praticamente da primeira à derradeira página dessa rica obra, a maioria dos poemas nela inseridos foi composta em uma das regiões mais secas, mais tórridas e mais áridas do mundo: no Oriente Médio (Israel, Cisjordânia, Faixa de Gaza, Egito etc.). Sarah trilhou os mesmos caminhos que Cristo percorreu há mais de dois mil anos em sua passagem pela Terra, sobretudo Belém e Jerusalém. Testemunhou, pois, a tradição, mas também viu de perto as rixas, antagonismos políticos e a violência que há dois milênios mancharam (e ainda mancham) de sangue lugares tão sagrados, que deveriam ser reverenciados com humildade, piedade e supremo respeito, mas que foram transformados em campos de batalha de três grandes correntes religiosas: cristianismo, judaísmo e islamismo”.

Como faço costumeiramente, sempre que comento um livro de poesias, partilho com você, sensível e inteligente leitor, um dos poemas que compõem essa coletânea (exatamente o que lhe dá título):

“Serpentearam águas tão cristalinas,
rolaram águas turvas, azuladas.
Ondas beijaram a morna areia de
mares glaucos e esmeraldinos,
nestas viagens de trajetórias tantas
que começam na ansiedade
e terminam na sabedoria.
Nos meandros da poesia
fui burilando a paisagem
de horas infindas
em águas de calmaria
que levaram meu barquinho de papel
pelas sarjetas da vida, indo embora
levando minha infância ao léu (...)”

Iniciei o prefácio do livro de Sarah da seguinte forma: “’A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero’. Esta magnífica definição de poesia cabe como uma luva para caracterizar este novo livro de Sarah de Oliveira Passarella (o oitavo da sua produção), intitulado ‘Águas de presságio’. Quem definiu dessa forma esplêndida essa arte que emociona e ao mesmo tempo faz pensar  só podia ser um poeta. E foi. Foi escrita por um dos mais hábeis e lúcidos escritores do século XX. Quem a fez foi o poeta, ensaísta e diplomata mexicano Octávio Paz, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1990.  Texto magnífico, como se vê, exposto de forma poética, posto que redigido em prosa. E que parece, sem nenhum exagero, ter sido escrito propositalmente, de encomenda, para caracterizar este ‘Águas de presságio’ de Sarah de Oliveira Passarella. Não o foi, mas bem que poderia ter sido”.

E prossegui assim minha apresentação: “A poesia dessa mulher culta e sensível, que maneja, com habilidade, inteligência e sensibilidade esse instrumento frágil e relativamente pobre, que é a palavra, satisfaz todas as condições propostas por Octávio Paz. É ‘conhecimento, salvação, poder, abandono’.  E mais: ‘revela este mundo; cria outro’. E mais ainda: ‘é convite à viagem; regresso à terra natal. É inspiração, respiração, exercício muscular. É súplica ao vazio, diálogo com a ausência’. É tudo isso e muito mais”. Se tivesse, portanto, que definir a poesia de Sarah de Oliveira Passarella numa só palavra, a chamaria, sem titubear, de ‘deslumbrante’! Se tiverem a oportunidade de adquirir este livro, façam-no, que não irão se frustrar. Mas leiam-no, confiram e certamente me darão razão.

Boa leitura!


O Editor.

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