Amor sem síncope
* Por
Rubem Costa
Rosa
de amor que me deu à vida.
Rosa de vida que me deu amor.
Manifestação espontânea do ser, o amor surge e
caminha independente de nossa vontade. O seu poder é dado conhecer já no nicho escuro do ventre
materno. O feto, enquanto espera aconchegado no útero, recebe as emanações
emocionais que vêm da mãe. Percebe e assimila. Até a fala, diz a ciência ,
repercute no ser em gestação, cujo cérebro está pronto a recepcionar a
linguagem afetiva de um idioma.
Se assim é, se no esconso em que se deita,
pode o embrião receber o eco de muitas falas, com mais razão se há de
imaginá-lo a acumular as vibrações mais profundas que partem da ternura daquela
que lhe dá forma corpórea onde a vida repousa.Lucas, o evangelista, conta a
história de Isabel, (a que foi fecundada na velhice) que, gestante de seis
meses, ao receber a visita de Maria, dá vazão a toda sua emoção, exclamando:
-“Ao chegar aos meus ouvidos a tua saudação, a criancinha saltou alegre no meu
ventre". - É dessa forma que se
manifesta o mais puro dos aprendizados, a querença espontânea destituída de
egoísmo. E esse amor, que vem da essência do homem, capaz de doar e imolar-se,
é a força interior que gera o perdão, expressão esplêndida da alma que leva à
remissão.
A criança nasce
encharcada de amor materno, que é mais forte e ardente que o paterno. Eis que o
pai pode ser tido, numa concepção poética, como o jardineiro que lança na terra
a semente e cuida para que cresça, mas a
mãe é árvore que suga do solo a seiva que percorrendo o tronco, se abre
em corola e se transforma em fruto. Por isso, é um amor fiel à sua própria
vocação de eternidade. Não desfalece, nem se cansa. Caminha no tempo como
guarda-chuva de proteção nas intempéries e bengala de arrimo nas veredas
pedregosos. É um todo permanente, não tem sincope, porque vive de uma interação
constante entre a alma que se aflige e o sonho de felicidade ao filho que se
afasta. Esse poder imanente do amor materno, quem o traduz, com rara
felicidade, é Roberto do Vale, escritor e jornalista, quando recorda que "
as mães guardam segredos imemoriais, a gente sequer os vislumbra. Quando muito
se percebe sinal rapidíssimo, em certos momentos, oscilando no brilho dos olhos
delas, que logo nos escapa: fugaz brincadeira dê natureza que quer intocável
esse grave mistério: o mistério do ser que gera o ser. Necessária, generosa,
fecunda. Dona da perpetuação do gênero. É mais que um conceito: é uma vivência
". Não importa que o mesmo Roberto do Valle, em contrapartida, filosofe a seguir,
lembrando que, "no contexto, ela assume, também, outros papéis não é
possível ser mãe o tempo todo. Por isso, diz ele, "acontecem mães também
absurdas ou frívolas, também banais, ou azedas, ou ásperas, tocadas pelos vírus
do circuito ". Não importa que assim diga, porque, ao final, imperativo,
adverte: "Mas seu valor essencial permanece, mesmo num mundo que pulveriza
valores ".
É uma visão justa que resguarda essa fonte
inesgotável que vem da origem do mundo e se projeta para as linhas do infinito.
Em sua unicidade é múltipla. x começo, mas não tem fím. Só por ela preexiste a
eternidade da vida humana e a grandeza do ser.
E o amor de filho? Não. O amor do filho é
sazonal. Emerge na infância com a força da ligação umbilical que o manteve
atado e alimentado no aconchego do útero materno. Respira fundo o sopro da
proteção até que, na juventude - ave que se empluma - começa, gaivota, a
ensaiar o vôo livre que torna entendível o brocardo popular quando diz que uma
mãe é para dez filhos, mas dez filhos não são para uma mãe.
Não é um mal. É a lei da vida. É o homem que
abandona pai e mãe para multiplicar-se. E renovar-se, transportando para a
descendência a mesma forma de afeto e de amor que recebera, antes, dos
ancestrais. Mas no fundo, na aparência irresponsável do moço, dormita o afeto
que, atravessando as intempéries da vida, um dia de novo rebenta no peito do
homem adulto, trazendo do fundo da memória a ternura de uma saga, a história de
um menino acalentado ao morno colo da mãe. Ninguém, como Mauro Sampaio, foi
capaz de traduzir tão bem esse retomo do coração maduro ao tempo criança: -
Rasquei teu ventre! /(Fui tropeço no teu caminho) Tirei de tua necessidade!
/Fui apreensão na tua mesa) /Dividi tuas noites ao meio!/ (Fui insônia de tuas
noites) /Me envolveste com tuas canseiras! / (Fui canseira de teus dias/ Tuas
lágrimas me carregaram!/ (Fui teu gemido, não teu lamento) Tranquei as noites
de teus amores!/ (Fui tua noite de descompasso)/ Neguei teu sangue, ó minha
mãe! - Que mais eu posso?
É assim que o poeta sente, é assim que o poeta
fala, é assim que o poeta vê o que sentimos sem saber falar. O amor, em
síntese, é o mesmo. O da mãe é transbordante, um constante repartir, como diz,
ainda, o mesmo Mauro Sampaio:
"Tuas mãos bem retratam tua vida!
Doze filhos, doze apreensões,/Doze roupas
para teu tanque,/ Doze bocas para
tua mesa/Doze insônias para tuas noites de
doze sobressaltos".
O amor do filho é mais
egoísta, porque deixa para traz a infância e caminha para frente de olhos fitos
no futuro, na busca de sua própria existência
que irá a se projetar na vida dos que dele advirão. Depois a cena se
repete. O filho se torna pai. A filha se torna mãe. Até que um dia, - ah, um
dia! - sem que saibam ou percebam, brota-lhes no coração , transvestido de
saudade, o amor que ficou esquecido. É nesse instante que, insensivelmente,
descobrem, escondido nas rugas do rosto, o amor que, hibernando, caminhava no
tempo. É o mesmo Mauro Sampaio que assim traduz o remorso da quase indiferença
dos filhos:
-“ Hoje, quero sentir que não morreste. Desejo estar
contigo, simplesmente,
Debruçar-me sobre tuas mãos E te
pedir a benção. Contemplar-te avidamente! “
* Escritor e membro da Academia Campinense de
Letras.
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