Por Mara Narciso
Tive a má sorte de pegar uma edição ruim de Hamlet, então foi difícil entendê-lo. O tradutor Péricles Eugênio da Silva Ramos é confiável. Passo então a narrar, numa interpretação livre, a apresentação da Doutora em Literatura pela USP, Ivana Ferrante Rebello, no dia 23 de setembro, na 13ª reunião do Clube de Leitura Felicidade Patrocínio. Esta artista plástica, Felicidade, é uma força titânica em congregar pessoas em torno de uma ideia, sendo incansável no estímulo à cultura e ao crescimento intelectual. Por questão de mérito é preciso citar essa característica.
Hamlet foi escrito por William Shakespeare, escritor inglês nascido em 23 de abril de 1564, baseado numa história real. Muito foi mudado no texto original, que sofreu ao longo dos séculos acréscimos e amputações. Os editores fazem censura política e de costumes, e assim a peça é encurtada ou ampliada em cada época. Shakespeare usou a linguagem das ruas, e o escritor criou ou adaptou palavras para definir suas abstrações. Muitas delas mudaram completamente de sentido. Os tradutores agem como críticos, pois, entre duas ou três palavras, a definição por uma delas não deixa de ser uma escolha.
Ivana Ferrante Rebello usou duas esculturas para mostrar a ambiguidade do personagem Hamlet. Dividido entre a sua porção humana, numa obra representando beijo e abraço, e a sua porção temente a Deus, numa escultura com as mãos estendidas para o alto, pedindo clemência, o personagem está entre o céu e a terra.
Segundo a Doutora Ivana, Hamlet é considerada a obra máxima da Literatura Universal. Atravessou os séculos e pulsa até hoje, num Inglês difícil até mesmo para os ingleses. No século XVII havia na Europa a reconstrução dos reinos, num mundo em guerra, frequentes invasões e fronteiras em constante mutação. “O homem criou seu destino, mostrando suas dúvidas e angústias, debaixo de uma força maior”, diz Ivana Rebello, e “Hamlet nunca se decidiu, não tomou atitudes e isso foi sua ruína. Durante séculos o personagem foi analisado sob essa visão, trazendo em si toda a consciência de que somos pequenos, e não conseguimos ter as respostas para as nossas incertezas: “Ser ou não ser?”da cena clássica, é pura explosão. “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”, também é frase constante.
Ivana Rebello resume: “A obra é inspirada em várias lendas clássicas, sobre as quais Shakespeare apura os ouvidos e faz a perfeição. Na Dinamarca, Hamlet é um príncipe da noite, que recebe a visita do fantasma do seu pai. Este pede para ser vingado, pois foi morto pelo seu irmão Cláudio. O fato ocorre sob a tensão da Inglaterra Elisabetana, numa Europa Renascentista tumultuada, sob a égide do Protestantismo. O príncipe idealiza um estratagema, e através do teatro representa a cena do assassinato, porém está cheio de dúvidas, perplexo diante da vida, e não sabe o que fazer. O Rei Cláudio, que assumiu o trono após a morte do irmão, se levanta durante a representação, gesto este entendido como uma confissão de culpa. Hamlet precisa tomar uma atitude, mas não consegue. Enamorado de Ofélia, cujo pai Polônio sugeriu não levar adiante o romance, ofende a moça, pedindo que ela vá morar num convento/bordel, num trocadilho, fazendo troça. Também chama Gertrudes, mãe dele, de prostituta, acusando-a de ter manchado o leito conjugal casando-se com Cláudio, mal o marido fora morto por ele. Hamlet, irônico, reflete que os mesmos pastéis do velório do pai foram servidos na festa do novo casamento da mãe”.
Para Ivana, há consciência rara de que a realidade tem várias interpretações, podendo-se imaginar como podem ser forjadas. Hamlet trata mal as mulheres que ama, e assim não desperta compaixão. Mostra que não sabemos quem somos, mas estamos conscientes da nossa fragilidade.
Continua: “Hamlet, falando com sua mãe, ouve um ruído por detrás das cortinas, pensa ser Cláudio e mata Polônio, pai de Ofélia. Nesse engano há fineza e sordidez. Abandonada pelo amado, e com o pai morto, a moça enlouquece. Em Hamlet acontecem a loucura real e a fingida. Cláudio manda Hamlet, que está fingindo-se de louco, viajar para a Inglaterra com uma carta que é a sua sentença de morte, mas ele descobre, troca a correspondência e envia seus ex-amigos no lugar dele. No destino faz amizade com o inimigo do seu pai, Fortimbras, que adiante vai invadir a Dinamarca. Ofélia se suicida, afogando-se, mas antes entoa cânticos eróticos em linguagem inapropriada. Mais a frente, dois coveiros, cavando a sepultura de Ofélia, conversam e filosofam, dizendo que a morte iguala todas as pessoas. Tanto o rei quanto o servo serão devorados pelos mesmos vermes. A classe baixa se aproxima dos nobres.”
Também é nessa hora que Hamlet pega o crânio de um Bobo da Corte, jogado de lado pelo coveiro, e que ele tinha conhecido, e fala a célebre passagem: “- Ser, ou não ser- esta é a questão: se é mais nobre e consentâneo à grandeza da razão suportar com paciência as pedras e as flechas da fortuna caprichosa ou armar-se contra um mar de desgraças e, combatendo-as morrer talvez. Morrer, dormir -mais nada- e com um sono supor que acabamos com a angústia e com mil embates naturais que herda o homem com todas as suas limitações e fraquezas [...]”
“Hamlet não queria só se vingar”, avança Ivana Rebello. “É nesse momento que nasce o homem moderno. Passamos a ter consciência de quem somos, conseguindo separar realidade e fantasia. Shakespeare coloca no personagem as angústias humanas, e dessa forma o homem adquire força pela sua humanidade. Não é um herói, assim a obra não é tragédia, é drama. Na tragédia há a catarse, e o público sai leve, pois expurga sua emoção, vivencia a dor, explode em emoção. Na tragédia o personagem não tem escolha, sendo o destino algo do além, escolhido pelos deuses, não por ele”.
“O rei Cláudio sugere a Laertes, irmão de Ofélia, a duelar com Hamlet para se vingar da morte do pai e do suicídio da irmã”, continua Ivana Rebello. “Seria um duelo desleal, com espada envenenada, assim como haveria uma taça de vinho contendo veneno, para, caso vencesse, brindar à sua vitória. Hamlet tem um fim terrível, pois sendo ferido, também fere Laertes e Cláudio, e sua mãe, a rainha Gertrudes, toma o vinho envenenado e os quatro morrem. Ao ver Hamlet no chão, constatamos a certeza das nossas falências físicas e da nossa morte.”
Ainda assim, para a Doutora Ivana, Hamlet não é uma obra pessimista, e mostra que as limitações da vida nos fazem fortes. Shakespeare não quer dar nenhuma resposta, não afaga com alento ou esperança. Quer relatar a experiência humana na Terra. “O teatro dentro do teatro é coisa moderníssima. Teatro é farsa, assim como a Literatura também o é. Então acontece a ficção dentro da ficção, sendo extraordinariamente verdadeira”, diz ela. “Mesmo que não tenhamos de vingar a morte do pai, sabemos o que é angústia, o que é temer a vida, e temer a morte. Isso é ser humano. É sublime a grandeza absoluta e a certeza da falibilidade do erro. A nossa mão se detém. Hamlet sobrevive como homem e não como assassino.”
Na opinião da palestrante, é inadequado olhar Ofélia com os olhos de hoje, submissa, subserviente ao pai, ao amado e ao irmão. Para ela, a morte é uma fuga da opressão e autoridade paternas. “Há cenas altamente sexuais. Através da loucura, Ofélia assume sua sexualidade feminina, cantando canções libidinosas. Assim, Shakespeare dá voz à personagem feminina, numa época em que esta era totalmente reprimida”, constata Doutora Ivana, “e Gertrudes, por sua vez, teve atitude corajosa, pois se enviuvou e se casou novamente”.
E depois: “O que é o homem? Não é feroz nem manso, não é bom, nem mau. Shakespeare inovou o teatro, falando de emoções corriqueiras, misturando o clássico com o popular, sendo universal e atemporal, atravessando o tempo e as culturas”. E assim Ivana finaliza: “A Literatura está longe de ser moralizante. Somos capazes de grandes coisas e de grandes baixarias. A moral muda e o homem será sempre o homem e suas circunstâncias”.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/
Realmente, deve ter sido muito enriquecedora a palestra, Mara. Até porque o peso do autor e da obra em debate sempre exigirão reflexões abalizadas. Li "Hamlet" na adolescência, logicamente sem a necessária maturidade para a empreitada. Seu texto me fez cogitar numa segunda e mais cuidadosa leitura. Abraços!
ResponderExcluirTambém penso em relê-lo depois das explicações da palestrante. Essas reuniões nos acrescentam muito. Obrigada pela sua valiosa atenção, Marcelo.
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