sábado, 20 de outubro de 2012

Fama de cão, exercício de gato

* Por Anna Lee

Dizem que os gatos não são animais confiáveis. Que são mesmo traiçoeiros. Nunca compartilhei dessa opinião, porque não é a traição que tenho experimentado ao longo da minha vida em que sempre houve e há um bichano por perto. Às vezes dois, às vezes três, outras vezes muito mais.

Sobre a Luma, que já tinha esse nome quando veio morar comigo, costumo dizer que é minha fiel companheira, dando-lhe uma atribuição que é dos cães, mas que ela exerce na plenitude. Não há lugar na casa em que eu vá e que ela não esteja do lado, vigilante. É capaz de passar horas e horas, madrugadas e madrugadas, sobre a mesa do computador e até reclamar quando não quero que se esparrame entre os meus papéis.

Outro motivo pelo qual não posso concordar com a fama de traiçoeiros que os gatos carregam é uma questão lógica. Têm eles também a fama de se apegarem à casa, de preferirem ela ao dono. Neste caso, ainda assim são fiéis, só que à moradia e não ao homem. Se bem que nunca fui preterida.

Tamanho discurso é para contar uma experiência, vivida dia desses, em que fui vítima da disposição cruel que normalmente os gatos costumam provocar nos homens e que, naquele momento, foi toda dirigida contra mim.

Antes, uma lembrança impactante da infância para corroborar com o que acabo de afirmar. Um primo pouco mais velho do que eu, coisa de dois ou três anos, tinha como maior diversão amarrar um barbante no rabo do Mingau, o gato da avó, e atear fogo. O bichano ficava enlouquecido, saltava, saltava, saltava desesperado, enquanto o primo – um imbecil – caía na gargalhada. Por que tanta impiedade? - eu me perguntava e ainda me pergunto, não à toa.

Estava eu e um amigo nos arredores do Jockey Club, entre a Gávea e o Jardim Botânico. Tínhamos acabado de jantar no restaurante que fica bem ali do lado e, para que ele pudesse degustar calmamente o charuto pós-refeição, resolvemos passear. Na mão, eu carregava uma sacola plástica com um livro que ele me devolvera. Enquanto eu andava, a sacola roçava na minha perna e produzia o barulho que não consigo reproduzir em palavras, mas que, tenho certeza, o leitor saberá do que estou falando.

Não demorou muito para que alguns gatos começassem a nos rondar. Um pouco depois, vieram outros e mais alguns até que nos vimos cercados por dezenas deles. Uns vinte. Pude contar por alto.

Não sei exatamente como foi que o Jockey Club se transformou, senão no maior, pelo menos num dos maiores pontos de concentração de gatos do Rio. Quando cheguei na cidade, lá pelo início dos anos 90, o lugar já era conhecido como tal.

No entanto sei que fiquei muito impressionada na primeira vez em que estive no local e pude constatar que não se tratava de lenda, ali, a superpopulação felídea era de fato incontestável, resistentes que os gatos são às muitas tentativas de dizimação.

Os bichanos foram aos poucos se aproximando de mim. Primeiro se espichavam na minha direção e quando estavam ao alcance das mãos se recolhiam, e, então, depois, muito depois de um arrastado balé, se deixavam acariciar.

Fiquei bastante tempo nessa brincadeira. Quando me dei conta, era eu e eles, e nada mais tinha importância. Meu amigo incentivava: “Eles a reconhecem, sabem que gosta deles, sabem que não correm risco perto de você”.

Quando já estava decidida a levar para casa o mais manhoso e sedutor de todos, que não desgrudara de mim nem um segundo sequer, e já estávamos perto do carro, o manobreiro se aproximou: “Sabe porque eles estão atrás da senhora? Por causa do barulho da sacola, acham que tem comida aí dentro”. E num movimento brusco espantou os bichanos e a minha alegria.

Senti enorme comiseração por aquele homem impiedoso que jamais teria um companheiro para segui-lo na vida, para ser o único capaz de entendê-lo e dedicar-lhe fidelidade canina.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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