segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Em marcha

* Por Daniel Santos

Essa tal mulher ficava bem ali no canto da praça. Falava muito e sozinha. E às vezes ria de se sacolejar. Depois, voltava a falar, gesticulava de si para si, como se estivesse se explicando coisas (caduquices, resmungos, vitupérios, pequenas histórias de ressentimentos, arrufos de indignação) e ria e ria mais.

Todos sabiam dela, mas poucos a encaravam. Passavam apressados, com urgências nos calcanhares, e logo se despediam da praça, daquela tal e do seu sorriso nervoso.

Um sorriso nervoso, sim, que saía rilhado por entre dentinhos de roedor. Fumava guimbas, as que encontrava pelo calçamento de pedras britadas, e cuspia longe, melhor até que os moleques. E ria, às vezes de um jeito estranhamente vigoroso, quase gutural, quase provocativo: tinha prazer em observar que mais corriam quanto mais gargalhava.

Essa mulher usava shorts (espólio puído e desbotado de alguma lixeira), gostava de mostrar as pernas, achava-as bonitas como as de uma dessas madamas que passam cremes e se exercitam em academias e tomam pílulas. Gostava tanto delas que as acariciava de uma maneira até insinuante, como se pretendesse atrair admiradores.

Mas, não. As pessoas evitavam-na. Seu andar vacilante como o de um boneco de borracha com armação de arame deixava a todos desnorteados: nunca se sabia se ela ia atacar ou pedir alguns trocados.

Alguém sem nome. Ou talvez tivesse um nome, mas não se lembrava mais dele, que se foi diluindo em contrações, em apelidos, mas já não importa. Queria se chamar Suzana e ter tranças e um colar de pérolas com várias voltas. E seria loura, se pudesse. Depois, ria mais. Loura? Ela? Ah, ria de não se agüentar até cair sentada no banco onde morava, onde deixou a marca oleosa das nádegas suadas.

Desapareceu numa dessas manhãs em que o Sol comparece sem trombeta e a luz escoa sem pressa por entre as folhas do fícus até pousar discretamente nas superfícies.

Mesmo na sua ausência, todos continuam a passar apressados e evitam olhar para aquele tal banco da praça, aquele ali bem no cantinho, de onde ela se levantou sem alarde.

O que parece é que não está mais parada, mas em marcha, na direção sabe-se lá do quê!

O choque pode ser a qualquer hora, em qualquer lugar. Mas onde? Quando?


* Jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

2 comentários:

  1. A vida, Daniel, é uma incógnita. Há quem pare
    incomodado com os maus modos, o sorriso vago
    ou o olhar perdido, para quê perder meu tempo
    se não tenho nem a garantia do dia seguinte?
    Saudades.

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  2. Bom vê-lo de volta, Daniel, e nos apresentando uma personagem repulsiva e curiosamente fascinante, pelo mistério e pelo fim.

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