domingo, 21 de outubro de 2012

A mulher de Greenwich Village

* Por Shirley Jackson

Miss Clarence parou na esquina da Sexta Avenida com a Oitava Rua e consultou o relógio. Duas e um quarto; chegou mais cedo do que pensava. Entrou no Whelan’s e sentou-se ao balcão, pondo sobre ele um exemplar do Villager junto com o seu bloco de notas e The Charterhouse of Parma, que lera com entusiasmo até à página cinquenta e agora trazia consigo apenas para vista. Pediu um chocolate gelado e enquanto o empregado o preparava foi ao balcão do tabaco e comprou um maço de Kools. Depois de se sentar de novo ao balcão, abriu o maço e acendeu um cigarro.

Miss Clarence tinha cerca de trinta e cinco anos e vivia em Greenwich Village há doze. Tinha vindo de uma pequena cidade do norte do Estado quando tinha vinte e três porque queria ser bailarina e porque nessa altura toda a gente que queria estudar dança ou escultura ou encadernação vinha para Greenwich Village, geralmente a expensas da família e com planos para trabalhar no Macy’s ou numa livraria até conseguir dinheiro suficiente para prosseguir estudos. Miss Clarence, que teve a sorte de ter tirado um curso de estenografia e datilografia, fora trabalhar como estenógrafa numa empresa de carvão. Agora, doze anos depois, trabalhava ainda na mesma empresa como secretária particular e estava já ganhando o suficiente para poder viver num bom apartamento em Greenwich Village, junto ao parque, e comprar roupas elegantes. Continuava a ir a ocasionais recitais de dança com uma ou outra colega do escritório e, às vezes, quando escrevia aos amigos da sua terra referia-se a si própria como uma “uma incondicional da Village”. Quando pensava no assunto logo se felicitava pelo seu bom senso em manter um bom emprego com competência, e viver melhor do que na sua terra.

Certa de que estava parecendo muito bem com o seu terno de tweed cinzento e na lapela aquela medalha de cobre comprada numa joalharia da Village, Miss Clarence acabou de tomar o chocolate gelado e consultou de novo o relógio. Pagou e saiu para a Sexta Avenida, caminhando desenvolta em direção à parte alta da cidade. Os seus cálculos estavam certos; a casa que procurava ficava precisamente a oeste da Sexta Avenida, e ela deteve-se por momentos em frente do prédio satisfeita consigo mesma e comparando-o com aquele muito apresentável edifício onde tinha o seu próprio apartamento. Miss Clarence vivia num prédio moderno de pedra e cal; este era de madeira e já antigo, com uma entrada nova que podia enganar quem não olhasse para o resto do prédio e não reparasse na arquitetura do virar do século. Miss Clarence confrontou de novo o endereço com o do anúncio do Villager e depois abriu a porta que dava para um hall sombrio. Encontrou o nome Roberts e o número do apartamento, 4B. Suspirou e começou a subir as escadas.

Parou no patamar do 3º piso para descansar e acendeu outro cigarro para uma entrada no apartamento com algum efeito. Ao cimo das escadas, no quarto andar, encontrou o 4B com uma nota datilografada pregada na porta. Miss Clarence arrancou a nota da tacha que a prendia e levou-a até à luz. «Miss Clarence,» leu ela, «Tive de sair para correr por alguns minutos, mas volto cerca das três e meia. Por favor, entre e vá vendo as coisas até eu voltar — toda a mobília tem o preço marcado. Peço muita desculpa. Nancy Roberts.»

Miss Clarence experimentou a porta e viu que não estava trancada. Ainda com a nota na mão, entrou e fechou a porta atrás de si. A sala estava numa confusão: caixas meio cheias de papéis e livros no chão, cortinados corridos, e os móveis com malas meio feitas e roupas em cima. A primeira coisa que Miss Clarence fez foi ir até á janela; no quarto andar, pensou, talvez tivessem uma bela vista. Mas a única coisa que viu foi telhados sujos e, um pouco mais longe, para a esquerda, um edifício alto coroado por jardins floridos. Um dia ainda hei de viver ali, pensou, e voltou para a sala.

Foi à cozinha, uma pequena divisão com um fogão de duas bocas e uma geladeira embutida por baixo e num dos lados um pequeno lava-louças. Não cozinham muito, pensou Miss Clarence, o fogão nunca foi limpo. Na geladeira havia uma garrafa de leite e três de coca-cola e um frasco meio vazio de manteiga de amendoim. Comem sempre fora, pensou Miss Clarence. Abriu o armário: um copo e um abridor. O outro copo devia estar no banheiro, pensou Miss Clarence; não havia chávenas: ela nem o café da manhã faz. Na parte de dentro da porta do armário estava uma barata; Miss Clarence fechou a porta muito depressa e voltou para a sala. Abriu a porta do banheiro e olhou lá para dentro: uma banheira antiquada, com pés; não tinha chuveiro. O banheiro estava sujo e Miss Clarence tinha quase a certeza de que lá também havia baratas.

Por fim, Miss Clarence voltou-se para aquela sala cheia de coisas. Tirou uma mala e uma máquina de escrever de cima de uma das cadeiras, despiu o casaco, tirou o chapéu e sentou-se, acendendo outro cigarro. Já tinha decidido que nenhum dos móveis lhe servia — as duas cadeira e o sofá-cama eram de carvalho, aquilo que Miss Clarence considerava o estilo Modernista de Greenwich Village. A secretária-estante era uma bela peça, mas tinha um risco em toda a largura do tampo e várias marcas de copos. Tem o preço marcado: dez dólares, e Miss Clarence disse para consigo que podia arranjar uma dúzia delas novas pelo mesmo preço. Miss Clarence, moderadamente despeitada com a empresa de carvão, decorou o seu sossegado apartamento em tons de bege e branco, e a ideia de lá pôr qualquer destas peças de carvalho brilhante aterrorizava-a. Logo imaginou os jovens de Village, frequentadores de livrarias, por entre aquelas mobílias de carvalho a beberem rum e coca-cola e a pousarem os copos onde calhava.

Por momentos, Miss Clarence pensou em oferecer-se para comprar alguns daqueles livros, mas os que se encontravam no cimo das caixas eram na sua maioria livros sobre arte e dossiers. Alguns dos livros tinham dentro a assinatura “Arthur Roberts”; Arthur e Nancy Roberts, pensou Miss Clarence, um jovem casal simpático. Arthur era o artista, portanto, e Nancy… Miss Clarence virou alguns livros e reparou num de fotografias de dança moderna; será que Nancy, pensou afetuosamente, é bailarina?

O telefone tocou. Miss Clarence, do outro lado da sala, hesitou por momentos antes de ir atender. Quando disse «Alô?», uma voz de homem, do outro lado, perguntou:
— Nancy?
— Não, desculpe, mas ela não está — respondeu Miss Clarence.
— Quem fala? — perguntou a voz.
— Estou aqui à espera para falar com Mrs.Roberts — disse Miss Clarence.
— Bem — respondeu a voz — fala Artie Roberts, o marido dela. Quando ela voltar, diga-lhe, por favor, que me telefone, está bem?
— Então, Mr.Roberts — disse Miss Clarence — talvez o senhor me possa ajudar. Eu vim ver as mobílias.
— Quem é a senhora?
— Chamo-me Clarence, Hilda Clarence e mostrei interesse em comprar a mobília.
— Então, Hilda — disse Artie Roberts — o que é que acha? Está tudo em boas condições.
— Não consigo decidir-me — disse Miss Clarence.
— O sofá-cama está como novo — continuou Artie Roberts. — Tive agora esta oportunidade de ir para Paris, sabe. É por isso que estou vendendo tudo.
— Isso é muito bom — disse Miss Clarence.
— A Nancy vai voltar para a família, em Chicago. Temos de vender tudo e resolver as coisas em muito pouco tempo.
— Compreendo — disse Miss Clarence. — Isso é que é o pior.
— Bem, Hilda — disse Artie Roberts — fale com a Nancy quando ela voltar e ela terá muito o prazer em lhe dar todas as informações. A Hilda não vai ficar mal com qualquer dessas coisas. Posso garantir-lhe que são muito confortáveis.
— Acredito que sim — disse Miss Clarence.
— Diga-lhe então que me telefone, está bem?
— Pode ficar descansado — disse Miss Clarence.

Despediu-se e desligou.

Voltou a sentar-se e consultou o relógio. Três e dez. Espero até às três e meia, pensou, e depois vou-me embora. Pegou no livro de fotografias de dança e começou a folheá-lo rapidamente até que uma fotografia lhe chamou a atenção fazendo-a voltar para trás. Já não via isto há anos, pensou — Martha Graham. E subitamente veio-lhe à ideia a sua própria imagem, com vinte anos, muito antes de vir para Nova York, a praticar a pose de dançarina. Miss Clarence pousou o livro no chão, pôs-se de pé e ergueu os braços. Já não era tão fácil como dantes, pensou, faz doer os ombros. Estava olhando para o livro por cima do ombro, tentando endireitar os braços, quando alguém bateu à porta e a porta se abriu. Um jovem — mais ou menos da idade de Arthur, pensou — entrou e ficou do lado de dentro da porta em atitude de quem pede desculpa.
— Estava parcialmente aberta — disse ele - e eu entrei.
— Sim? — disse Miss Clarence, deixando cair os braços.
— A senhora é Mrs.Roberts? — perguntou o jovem.

Miss Clarence, tentando dirigir-se com naturalidade para a cadeira, não disse nada.
— Vim por causa da mobília — disse o homem. — Pensei ver as cadeiras.
— Claro — disse Miss Clarence. — O preço está marcado em todos os móveis.
— Chamo-me Harris. Acabei de me mudar para a cidade e ando tentando mobiliar a minha casa.
— Hoje é muito difícil encontrar as coisas.
— Este deve ser o décimo lugar onde venho. Queria um armário para arquivo e um sofá de couro grande.
— Receio que… — disse Miss Clarence apontando a sala.
— Já vi — disse Harris. — Hoje quem tem dessas coisas guarda-as. Eu escrevo — acrescentou.
— Ah, sim?
— Ou melhor, espero vir a escrever — disse Harris.

Tinha um rosto redondo, agradável e quando disse isto sorriu prazenteiro. — Vou arranjar emprego e escrever à noite.
— Tenho a certeza que não vai ter grande dificuldade — disse Miss Clarence.
— Alguém aqui é artista?
— É Mr.Roberts — disse Miss Clarence.
— É um tipo com sorte — disse Harris — e foi até à janela. — É mais fácil desenhar do que escrever. Esta casa é realmente mais bonita do que a minha — acrescentou ele subitamente olhando pela janela. — A minha é um buraco.

Miss Clarence não conseguiu arranjar nada para dizer, e ele voltou-se para olhar para ela.
— Também é artista?
— Não — respondeu Miss Clarence. Respirou fundo. — Bailarina.

Ele sorriu de modo prazenteiro.
— Já devia calcular, quando entrei.

Miss Clarence riu com modéstia.
— Deve ser uma maravilha — disse ele.
— É duro — disse Miss Clarence.
— Deve ser. Tem tido sorte?
— Nem por isso — disse Miss Clarence.
— Parece-me que é a mesma coisa em toda a parte — disse ele. Dirigiu-se ao banheiro e abriu a porta; quando ele olhou lá para dentro, Miss Clarence estremeceu. Ele fechou a porta outra vez e não disse nada, e abriu a porta da cozinha.

Miss Clarence levantou-se para ir ter com ele e olhou também para dentro da cozinha.
— Eu não cozinho muito — disse ela.
— Não a censuro, com tantos restaurantes por aí — Fechou a porta outra vez e Miss Clarence voltou a sentar-se. — Mas eu não posso tomar o café fora. É coisa que não posso fazer — disse ele.
— Prepara-o você mesmo?
— Faço por isso - disse ele. — Sou o pior cozinheiro do mundo. Mas sempre é melhor do que ter de sair. Preciso é de uma mulher — sorriu de novo e dirigiu-se para a porta. — Quanto à mobília, tenho pena. Gostaria de ter encontrado qualquer coisa aqui.
--- Esteja à vontade.
— Vocês vão deixar a casa?
— Temos de despachar tudo — disse Miss Clarence. Hesitou. — Artie vai para Paris — disse por fim.
— Quem me dera — suspirou ele. — Bem, felicidades para ambos.
— E para você também — disse Miss Clarence, e fechou a porta devagar depois de ele sair. Ouviu-o descer as escadas e depois olhou para o relógio. Três e vinte e cinco.

Subitamente apressada, procurou a nota que Nancy lhe deixara e tirando um lápis de um dos caixotes escreveu nas costas do papel: «Cara Mrs.Roberts —Estive à espera até às três e meia. Tenho pena, mas a mobília não serve para aquilo que eu quero. Hilda Clarence». Ficou pensando por momentos, de lápis na mão e depois acrescentou: «P.S. O seu marido telefonou e pede que lhe telefone logo que chegue.»

Pegou no bloco-notas, no The Charterhouse of Parma e no Villager e fechou a porta. A tacha ainda lá estava e ela tirou-a e prendeu com ela a sua nota. Depois voltou-se e foi escada abaixo a caminho de casa, do seu próprio apartamento. Doíam-lhe os ombros.

• Escritora norte-americana

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