* Por Marco Albertim
Uma mulher nua é conduzida por homens que têm o rosto encapuzado; não se preocupa com as minúcias do corpo simétrico, no estilo das paredes, colunas e portas barrocas do cenário. Agacha-se. O sexo expõe-se feito uma corola sob a luz. À sua frente, um crocodilo tão monstruoso quanto sereno apenas mexe as pálpebras.
Há uma relação de empatia entre os dois, posto que abre a bocarra, dá conta das presas agudas; sem frêmitos de fome. Ela some, no engatinhar cadenciado, nas entranhas da fera.
Não fosse o erradio sonho de Bertrand Saint Jean – Oliver Gourmet -, a sequência inicial do filme de Pierre Schöller – O exercício do poder – seria o começo de um enredo com ingredientes vivos de sadomasoquismo. Mas o ministro dos Transportes da França é acordado por um súbito telefonema. Se o seu sonho reflete a força do poder ao tornar reféns seus servidores, bem como a docilidade com que os reféns se entregam para não perder o status, é na alegoria que o título do filme se anuncia. Dar-se ao poder para exercer o poder é o exercício do poder.
O jogo se mostra já fora do sonho, quando um assessor do ministro telefona para ele para informar sobre um desastre de um ônibus que despenhara de um penhasco, lotado de crianças. Antecede o telefonema, uma amostra de orgia entre dois homens e uma mulher. A mulher, diga-se, deixa-se servir como a bebida ou a comida na mesa à frente do sofá. É o exercício que, por enfastiamento, não entrevê o próprio fim na estroinice.
O sonho de Bertrand Saint Jean fora erradio, mas daquela madrugada em diante o ministro do governo neoliberal de Nicolas Sarkozy, torna-se refém do cargo, das pressões para a privatização das ferrovias do país, das pretensões de reeleição de Sarkozy. A mise-em-scène tem começo nas gordurosas declarações de “solidariedade” às famílias das vítimas. Ele posa para as câmaras, contrai a face a cada voto de pesar; nisso, tem a competente ajuda de sua assessora de imprensa, Pauline – Zabou Breitman. “Você esteve ótimo.” – diz ela. É o exercício em curso.
Permeiam o filme as pressões para a privatização do sistema ferroviário. O ministro é contra; não por se deixar influenciar pelos sindicatos contrários, mas para não se tornar “o ministro das privatizações.” A máquina do governo é enorme, os tentáculos são invisíveis. Ele tem apenas como apoio seu chefe de gabinete, Gilles – Michel Blanc. Blanc ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante; ele introjeta a frieza das decisões oficiais sem trair o sentimento de amizade ao ministro. Gilles, por ser confidente de Saint Jean, media o contato do ministro com extratos pobres da população; sem o saber. Por sentir-se tão só, Saint Jean constata que tem quatro mil contatos no celular, “e nenhum amigo.”
O começo da humanização do ministro dá-se quando ele se convida a ir à casa de seu motorista, o calado Martin Kuyers – Sylvain Deblé. Num arrabalde distante do centro de Paris, a casa ainda está por ser concluída. Rola bebida. A mulher de Kuyers, Josepha - Anne Azoulay, não tem rogos para se fazer ouvir como mulher do povo. “Nós estamos agonizando!” – diz ela, referindo-se à problemática social. Josepha, se entrevistada numa pesquisa, manifesta a opinião das milhões de vítimas do governo neoliberal. A bebida tem um efeito catártico no ministro, visto que seu motorista leva-o para casa depois de tirar de suas mãos, uma pá de pedreiro; no delírio da catarse, o ministro fizera-se pedreiro para concluir a alvenaria da casa de Kuyeurs. Há um pastiche remoto na sequência, mas o mais ilustrativo é a crise social e seu reflexo confuso no juízo de um burguês.
O exercício... aflora explícito quando ele ouve a exortação do presidente, para debelar a crise: “Neutralizar, neutralizar, neutralizar.”
]A mise-em-scéne retoma com força, no velório do motorista, morto num acidente de carro em que Saint Jean e o assessor sobreviveram. Ele tem um colete no pescoço, e está vestido de preto junto com seus assessores. A viúva mantém a dignidade própria dos pobres que não sabem o que é encenação.
O exercício do poder é um filme atual.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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