segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A escadaria do tempo

* Por Paulo Valença

1

A noite com os seres em suas lutas íntimas...

Ela desce a escadaria. Devagar. Pensativa. Contida ao seu mundo íntimo. A fuga entre o mundo cruel, realista. Até quando descerá esses degraus, em rumo ao trabalho na Indústria de Embalagens próxima? Um dia se libertará do emprego medíocre, será outra Nize?
- O futuro me dirá...

A voz baixinha, que exprime tudo. E sorri, resumindo-se. Vence os degraus estreitos, encardidos pelo tempo. As casas nas laterais, de porta, janela. Poucas com o terraço e o muro a frente. Moradias pobres, de operários na maioria. Gente que sabe quanto custa viver que sofre na alma a luta pela própria sobrevivência e dos familiares, contudo, quem poderá mudar tudo isso? Enquanto houver mundo, as desigualdades permanecerão.
- Sempre haverá as disparidades da sorte.

Chegando à rua embaixo, transversal, segue em frente. Nas calçadas das residências laterais, há os pedestres cruzando-as, no agitar natural das noites.
- Boa noite, Nize.
- Boa noite, seu Dezinho.

O homem “coroa” sorri e com disfarce, segue o corpo esguio, moreno, da moça. Ah, se ela me “desse bola!”. Pensa. Malicioso. Encantado ante o “charme” da mulher bonita, tipo-brasileiro, mas, quem sabe? Se um dia, numa hora... Empurra o portão e adentra na área com o jardim mal-cuidado e o terraço, da residência com a varanda e as janelas fronteiras, indo ao encontro da solidão que o aguarda, na idade de solteirão e, mais uma vez, sente o peso doloroso de se sentir sem a companhia humana, para lhe preencher o vazio da existência.

Já no terraço, voltando-se, busca a figura da jovem, que vai diminuindo, até que ao dobrar a esquina desapareça. Então, ele abrindo a porta, adentra na sala de sofás e a televisão no ângulo formado pela junção das paredes. Então, suspirando alto, nervoso apertando o comutador, acende o ambiente frio do calor humano.

2

- Tudo bem, me espere aí embaixo, na rua. Chego já.

Repõe o celular na bolsa de correia presa ao ombro esquerdo e se apresando ausenta-se da pequena sala, cruza a varandinha, a área reduzida que se interpõe entre essa e o muro e abrindo o portãozinho, logo desce a escadaria e, como sempre, vai pensativa. Integrada ao próprio mundo íntimo. O Edu é bonito, bem empregado, mas não passa de um cara que não quer nada com responsabilidade familiar. Foge dos compromissos de um sujeito normal. Na realidade ele só quer “curtir” os instantes de prazer que o seu corpo de jovem morena e graciosa se lhe oferece...
- Um cafajeste!

Mas... A atração que ele lhe exerce, subjugando-a, fazendo-a escrava da carne? Sim, aos poucos, ela lhe atende às solicitações da voz máscula, forte, dominadora.
- Assim eu não gosto!

Ele sorri e espera... Vencendo-a ao capricho solicitado. Sim, precisa se libertar dessa paixão que não lhe oferece uma existência digna de ser vivida.
- Uma existência de ser apenas mulher!

Fala, no desabafo dolorido e prossegue vencendo os degraus, já então avista o automóvel prateado, ao meio-fio da escadaria. Esperando-a. Logo, a porta se abre, acolhendo-a.
- Demorei amor?
- Que nada “gata!”. Vamos?
- Vamos.

Então, possante e macio, o carro parte.

3

Em silêncio, seu Dezinho dirige e, Nize, com o rosto voltado à escadaria longa, adiante, fala:
- Pensar que por anos subi e desci aqueles degraus, que ia “encucada”, imaginando como seria o meu futuro...

Seu Dezinho mantém-se calado. Respeita-lhe o desabafo. Entende-a. Apenas se limita a olhar para frente, à rua com os pedestres, os carros, motos e bicicletas, agora em número maior. Um mundo à parte...
- Bem falava o meu velho pai, naquela cadeira de balanço, ali no terracinho da casa onde morávamos: “ De vez em quando, é bom a gente pensar no que se sofreu para dá valor ao que temos no presente...” E é isso mesmo, a gente só aprende, sofrendo.

A mão que abre a bolsa ao ombro esquerdo, que traz o lenço... Nezinho conserva a atenção à rua, numa fingida concentração. Sim, entende Nize. A jovem que aceitou ser sua mulher, a companheira das horas certas e incertas...
- Mas... O que passou, está morto! O sensato, o prático é se encarar o presente, a realidade atual. Hoje, graças a Deus eu tenho você, Nezinho, que é meu amparo, a vida que não tive.

Pausa e, com a voz trêmula pela emoção do que sente, inquire:
- Vamos indo?
- Vamos Nize. Vamos embora!

A mão (a mesma que há pouco segurou o lenço?) aí pousa no braço do 0homem, numa carícia de gratidão e, devagar, o carro parte, deixando 0(deixando?) para trás a escadaria, com suas histórias, seu passado. Nize cerra os olhos, resignada e seu Nezinho pigarreia, buscando outra vez se ausentar, não se revelar... E, acelera.


* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário