domingo, 23 de setembro de 2012

Jornal do caos

* Por Ronaldo Bressane.

Marte

Desesperadamente na festa em que estive – em que estive agora pouco já nem me lembro o por quê, talvez uma vernissage talvez o lançamento de um livro –, desesperado porque vinham falar comigo e eu não lembrava seus nomes, desesperado porque achava que todos reprovavam o jeito como segurava o cigarro ou bebia rápido demais o vinho, desesperado porque sentia de novo aqueles calafrios nos braços, desesperado porque odiava aquela muzak prozac em jamsession de branco metido a negão com muito saxofone e muito yeah, desesperado abordei uma patricinha falsa loura, que sabia ser filha da dona de uma loja fodona em SP, mandando alguma babaquice sobre os arabescos da barra de sua saia... nossa, que maravilha, me lembram um documentário que vi sobre a invasão dos mouros na Espanha, ah, você gosta do Paco de Lucia? E de Paco de Lucia emendamos para que delícia é passear pelo bairro gótico de Barcelona e as touradas e Gaudí e o último filme do Almodóvar que eu não tinha visto, como é que não tinha assistido o último filme de Gaudí, digo, de Paco Rabanne, mesmo assim, para impressioná-la, resgatei dos escombros da memória aquele poema do Hemmingway sobre Ademir da Guia e os toureiros de Madri, mas o primeiro verso não me vinha, não me vinha, aquele vinho morno minha garganta regurgitava para a língua me fazendo esbugalhar os olhos catalãos, parara-tchim-bum-bum-bum, ela se assustou, riu, interessada, já, educadamente tentou contornar minha falta de destreza poético-cinematográfica qual seja minha charmosa incultura de ocasião e veio com uma historinha de almoço na casa da mãe em seguida me chamando a atenção pra um velho e uma velha que com tal langor degustavam coxinhas rançosas... você que é jornalista, olha que pauta, tá vendo aqueles dois ali, eles estão em quase todos os lançamentos de livros, vernissages e eventos culturais de São Paulo, um amigo me disse que são velhinhos pobres que caçam eventos pela cidade pra satisfazer sua fome cultural, repare como eles são humildes mas limpinhos, o paletó puído do senhor e o vestido costurado da senhora; esse meu amigo diz que sua postura de pseudointelectuais denuncia eles serem mais uns coitados que se fingem de personagens da intelligentzia paulistana, mas eu discordo, tenho pra mim que eles vêm nessas vernissages mesmo é atrás de canapés e tacinhas de vinho branco fajuto – nisso irrompeu de meu estômago em borbulhas de Pollock no vestido mourisco da moça um vomitão, wwwaaaaaarrrrrhhggg: oh meu deus desculpe desculpe desculpe, eu limpo você, eu te limpo, ai que nojo, putz, desculpe, por favor, ei, cadê os velhinhos, os velhinhos foram embora, qual seu nome mesmo, ai, desculpa, sou uma grossa, uma egoísta, você tá melhor? tou, tá tudo bem, Maria Fernanda, Zed Stein, tchau, tchau, vamos marcar, vamos sim, me manda um e-mail, olha, pega meu cartão, até mais, qualquer coisa eu tô no celular.

As vozes outra vez na minha cabeça me locutando flashes de notícias sobre homicídios Oscar Nobel gols maracutaias desastres de trem na Índia DJs do momento crises cambiais conjugais no trono inglês, tantas coisas que eu precisava saber e passar pra diante... gelado, suando, a taquicardia ressoando pras mãos em 190 bpm, a língua uma lixa, o bucho feito um tatu-bolinha e o pau virado num pastel murcho, senti que devia me cuidar, me recolher ao meu loft meu mundo meu tesouro e conseguir pagar a conta no restaurante com cheque sem fundo já que o cartão de crédito bloqueado e responder afinal pro manobrista que não tenho carro, caralho, tou parado aqui espiando o movimento, posso, porra? Saí andando, vesgo pros sinais de trânsito – achava que vermelho estava aberto e verde fechado, quase fui atropelado –, vislumbrei ao longe os tais pobres velhinhos, prosseguindo lenta e cultamente pelas ruas da Vila Madalena, hieráticos, como se indo à ópera só ao avistarem uma lata de lixo. Ir atrás deles me deu motivação pra sair do sonambulismo, ah, o bom repórter nunca morre.

Não eram tão pobres. Nem muito originais... Moravam na rua Original, justamente naquela casinha minúscula cercada por edifícios residenciais de vinte andares – semelhando banheiros em sua estética azulejo-pós-neoclássico –, sua casinha térrea sem jardim nem quintal que eu via todos os dias. E, engraçado, sem antena de tv (os tais velhinhos malignamente ilhados sob uma tempestade de white noise, ah que saudade de um poltergeist, estou bodeado de ser unheimlich de mim mesmo, quero meu alter ego de volta, nunca mais vou pra nenhuma festa que não seja o Galo da Madrugada).
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Segunda parte de “Jornal do caos”, conto de Céu de Lúcifer [Azougue Editorial, 2003]

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).

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