quinta-feira, 27 de setembro de 2012

D. Nair sabe

* Por Paulo Valença

1

D.Nair está no sofá, à frente da televisão, com a novela do final da tarde e ante a aproximação da filha, a Selminha, se volta e, numa censura, inquire:
- Mas menina, já vai sair? Nem jantou... Você vai pra aonde?

Aí a adolescente procura se livrar da mãe, ganhando a rua e, apressando os passos, responde:
- Vou até a casa de uma colega do Grupo Escolar, ali em Beberibe.
- Mas...
- Tchau, mãe. Volto logo.

O corpo esguio, nas calças brancas justa, blusa azul, bolsa ao ombro e botinhas preta ganha então o terracinho, cruza a pequena área entre esse e o muro baixo e, com as mãos nervosas, abrindo o portão, a mocinha desce a rua estreita.

Sozinha, a mulher se ergue e no terracinho, com os olhos aflitos, segue a figura que vence a inclinação da rua e que dobrando a esquina à direita, desaparece na rua transversal.

Ah, a Selminha está aprontando! Ela, Nair, como mulher vivida, experiente e mãe, presente... Sabe. Compreende essas saídas repentinas no começo da noite. As desculpas. Os passos fugitivos e provavelmente, depois virão as conseqüências... Como se não lhe bastassem à viuvez pobre, os sacrifícios para se manter com a filha!

Balança a cabeça em gesto crítico e, com a ate3nção às casas do morro adiante, se perde em reflexões dolorosas, angustiantes.
- Tanto que já reclamei!

A voz alta, no protesto que exprime o grito íntimo do que compreende. Aos poucos as luzes das residências se acendem e, na noite que desponta, os mil olhos compõem o quadro bonito e cruel dos passos fugitivos que bem expõe os dramas humanos que habitam as pequenas moradias, de uma das incontáveis favelas da grande cidade de Recife.

Devagar, a mulher retrocede à salinha e outra vez no sofá, tenta se prender às cenas da novela, contudo, não consegue. Preocupada. Sim, entende...

2

Após se comunicar através do celular ela nervosinha, o põe na bolsa presa por correia ao ombro esquerdo. Sorrindo maliciosa, aguarda, no banco próximo ao monumento que exibe homens de braços erguidos, no gesto que simboliza a contestação, o grito pela liberdade.

Sem tardar, o automóvel cinza se avizinha., com o sujeito “coroa” dirigindo-o. Ah, hoje aquela jovem irá lhe satisfazer novamente... Sim, após o jantar no restaurante à beira-mar, o motel os acolherá e a curtição será grande... É isso aí, cara: daqui a pouco, a gatinha gemerá no jogo delicioso do amor!

Sorri, vaidoso, sentindo-se um homem vitorioso e estaciona junto ao passeio da praça. E buzina, anunciando-se. Sorrindo, Selminha vem ao seu encontro. Esguia. Feminina. Morena. A imagem da beleza, no convite ao pecado. A porta se abre e ela apressada adentra.
- Demorei? - indaga a voz grossa e, a adolescente:
- Não, chegou logo. Eu tava até com medo de algum engarrafamento...
- Esquece isso. Pensamento positivo gata!

Sorriem. Sim, o carro possante se afasta, com os seres do prazer, na noite cúmplice, que tudo envolve.



* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.

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