terça-feira, 18 de setembro de 2012

Tinhoso – III

* Por Fernando Barreto

Capítulo 3- Glue Sessions

Próximo ao prédio de Miro, mais exatamente na Avenida Duque de Caxias, havia um hospital público, e em frente a ele, de segunda à sexta, trabalhava um sujeito que apresentava graves seqüelas motoras. Miro regularmente ouvia várias pessoas dizerem na frente do hospital que a causa desses problemas foi um acidente de moto. Era legítimo supor que o cara tenha sido socorrido naquele mesmo hospital, e que com seqüelas definitivas de uma provável perda de massa cerebral e lesões ósseas, tenha sido aproveitado ali mesmo para uma função praticamente simbólica. Ele vestia um colete laranja e quando apitava, um motorista de taxi dirigia poucos metros desde o ponto até a porta do hospital para prestar serviço a quem estivesse saindo dali. No estado em que esse rapaz do apito se encontrava, era comovente ver como se sentia realizado ao intervir na cena.

O tal sujeito tinha entre 35 e 40 anos, porte físico frágil, cerca de um metro e setenta de altura e 60 quilos e seu rosto era o do Magnum, aquele velho canastrão do seriado de TV dos anos 80, só que mais magro e sulcado. O bigode era idêntico, mas o olhar se mantinha eternamente abstrato, sem foco. Seus sérios problemas motores manifestavam-se a cada movimento que fazia ou frase que falava. Seu temperamento pacífico, mas ansioso pelo momento de soprar novamente o apito e mobilizar mais um motorista de taxi fazia com que Miro torcesse por ele sempre que o via em ação, como se estivesse acompanhando a performance de um atleta participando de uma prova nas Paraolimpíadas, lutando contra suas limitações.

Não havia um só dia em que Miro ao entrar ou sair de seu prédio em horário comercial não visse aquele sujeito, pois para quase tudo o que fazia fora de casa era necessário passar na frente do hospital. Pensava em investigá-lo para escrever sobre ele, e toda vez que o via prometia a si mesmo que à noite lembraria do cara quando estivesse acomodado em sua casa, e a partir de então se sentiria um sujeito de sorte por jamais ter sofrido um acidente sério a ponto de lhe custar o que havia lhe sobrado de sanidade e de saúde física. Chegava a ficar com raiva de si mesmo quando, segundos antes de avistar novamente o pequeno Magnum num outro dia, se lembrava que na noite anterior pensou em muitas pessoas, coisas e situações, menos naquele pobre infeliz. Coisas tristes, melancólicas e feias podiam estar acontecendo àquele sujeito, assim como certamente estavam acontecendo nas ruelas do Centro enquanto ele tinha o conforto de sua quitinete aconchegante e latas de atum e pão de forma integral.

Elvis maldosamente imitava o pequeno Magnum para Miro, sempre que ele era assunto entre os dois. Estudava cuidadosamente seus trejeitos e os reproduzia ao atravessar ruas movimentadas, a fim de que os carros parassem ou desacelerassem e o deixassem passar sem que fosse preciso esperar muito tempo. Ao chegar do outro lado da rua Elvis voltava a andar normalmente, causando ira em alguns motoristas e fazendo com que outros rissem.

Já Miro tinha certa compaixão pelo pobre homem acidentado e queria criar uma obra de ficção baseada na realidade sobre sua necessidade diária de superação, sobre o local onde ele dormia, como passava o tempo em que não ficava transitando com dificuldade com aquele coletinho laranja, usado por quem chama os taxistas para atenderem as pessoas que saíam do hospital. O fato é que Miro nunca se lembrava dele à noite, e o fato de estar passando naquela época por uma crise criativa que o impedia de escrever contribuía para isso. A razão era simples; Miro prometia a si mesmo lembrar-se à noite de todas as pessoas surradas pela vida que encontrava em suas andanças por São Paulo, em especial na região do Centro.

Havia pessoas debilitadas a quem Miro conhecia, ainda que só de vista, e as que cruzavam seu caminho aleatoriamente, para nunca mais serem vistas. Ao invés de lembrar-se deles, Miro, que tinha um ego razoavelmente grande, lembrava mesmo era que a velha Masumi poderia perturbar-lhe caso descesse pela escada, ou que no dia seguinte teria que enfrentar alguma outra adversidade cotidiana, bem mais simples do que as dos sofridos humanos que povoavam seus caminhos na região central da cidade.

Miro descobriu que o rapaz acidentado era amigo de Herbert, o carteiro legal. Herbert era um sujeito que entregava correspondências em seu prédio e nos outros das redondezas, e que era visto por Miro com alguma regularidade. Nos primeiros tempos de Miro no centro, isso acontecia quinzenalmente, em média, sem que se falassem.

O carteiro legal entendia de música. Conhecia discos clássicos, tanto entre os que faziam parte do mainstream nos bons tempos que eram os anos 60 e 70, como também as pérolas da música alternativa, e de outros gêneros, não apenas do Rock. Miro já o tinha visto atuando como carteiro inúmeras vezes. E eis que numa tarde bêbada de sábado, viu o sujeito comprando discos do Nektar, Pacific Gas and Eletric, Mummies, Husker Dü, Teenage Fanclub, X Ray Spex, The Deadbeats, The Amps, The Replecements, tudo de uma vez, gastando uma quantidade de dinheiro que Elvis e Miro não teriam juntos num mês inteiro, numa loja na rua 7 de Abril. Ali estava alguém que tinha alma. Ele aglutinava vertentes do rock que alguns indies e alguns apreciadores puristas de rock clássico vomitariam só de ouvir falar da heterogênea mistura que Herbert fazia com naturalidade, e que também era apreciada por Miro e Elvis.

Herbert não era daqueles cabeludos ensebados e bêbados que são fanáticos por Hard Rock dos anos 70 e tampouco um indie com agasalho adidas e franjinha que vive ouvindo só shoegaze, lados B de singles de projetos paralelos de integrantes de bandas independentes e obscuras do País de Gales, mesmo gostando de ambas as coisas. Lembrava que nos anos 90 o Jesus and Mary Chain teve um baterista cabeludo, o que demonstrava de maneira definitiva que as fronteiras entre gêneros de rock têm que ser mandados às favas. Ele queria saber é de diversão nas horas vagas. Elvis dizia que tratava-se de um ‘indie old school’. Não demorou quase nada para que Miro e Elvis descobrissem que Herbert gostava de bafar cola ouvindo Ramones e fazendo projeções de desenhos do Pica-pau na parede de seu quarto.

O carteiro legal virou ídolo instantâneo para a dupla e a partir de então muitas latas de Cascola foram compradas na loja de material de construção da Boca do Lixo, que ficava na esquina da Rua Timbiras com a Conselheiro Nébias. Miro, Elvis e Herbert iam até lá, juntos ou individualmente. Perguntavam o preço de parafusos, brocas, lixas e outros utensílios, e no final a solicitação era a mesma de sempre: ‘Vou levar só a cola mesmo’.

Herbert parecia satisfeito com seu emprego, o que era bastante natural, uma vez que o cara trabalhava nas ruas e estava sempre em movimento, uma vantagem bastante razoável diante das outras possibilidades de emprego que apavoravam Miro e Elvis. Eis aí outra atividade na qual Miro poderia salvar suas finanças, ou ao menos manter as contas sob controle. Concursos públicos poderiam salvá-lo, o que era quase confortante. Poderia se tornar mais um funcionário público indolente sugando o Estado. Era preciso pagar as contas. Para salvar a humanidade, humanizando-a, seria preciso mais do que a existência e a boa vontade de Miro, de Elvis e de Herbert. Esses caras poderiam salvar a si mesmos, na melhor das hipóteses.

Todas as vezes em que Miro ou Elvis encontravam Herbert na portaria do prédio, conversavam sobre Rock e falavam por um bom tempo na frente de pelo menos outras duas pessoas no hall de entrada do prédio, já que ali os porteiros sempre estavam conversando com alguém, fosse um morador, um outro funcionário do prédio ou alguma empregada doméstica que relatavam a eles o que acontecia dentro das residências em que trabalhavam.

Miro, Elvis e Herbert falavam sobre coisas que para aquela gente era difícil entender, e isso fez com que Miro passasse a desfrutar de um certo conforto que o respeito da vizinhança por sua cultura podia lhe proporcionar. Herbert já era conhecido por ali, e a dupla passou a ser melhor aceita pelos vizinhos, apagando um pouco da imagem arrogante que pareciam ostentar. Miro passou a ter a impressão de que as pessoas ali passaram a importuná-lo menos a partir de então, talvez por não serem articuladas como ele e terem vergonha disso, pensando duas vezes antes de abordá-lo gratuitamente.

Numa tarde de meio de semana, Miro perguntou a Herbert sobre o rapaz sequelado que trabalhava na frente do hospital. Estava precisando de ‘sumo’ para uma história que estava começando a escrever, e explicou a Herbert que se tratava de uma mistura de ficção com realidade cotidiana.

Herbert contou a Miro que o rapaz sequelado tinha realmente sofrido um acidente de moto, e que de fato foi atendido em estado grave naquele mesmo hospital, confirmando aquilo que Miro já supunha. Herbert conheceu o rapaz sequelado numa ocasião em que passava na frente do hospital num dia de folga carregando discos de vinil e foi prontamente abordado. O rapaz pediu que Herbert lhe mostrasse os discos, já que a sacola de plástico onde estavam sendo carregados era transparente e era possível ver que entre os álbuns havia uma maravilhosa edição importada do Disraeli Gears, do Cream. Fascinado, o rapaz contou a Herbert acontecimentos passados de sua vida, especialmente os relacionados ao Rock. Contou que era músico e foi abandonado pelos parceiros depois de ter sofrido o acidente.

O doidinho não tinha perdido o gosto pela música mesmo com as seqüelas do acidente. Miro então passou a se questionar se o cara era mais louco antes de acidentar-se, ou se ficou pior depois do acidente, levando em conta que provavelmente ele estava conduzindo a moto com velocidade excessiva ou com algum outro tipo de imprudência, talvez louco de bebida ou droga, e com jaqueta de couro e aquele bigode que estava caindo em desuso, mas que faria sucesso no começo dos anos 70, quando tinha um significado relacionado à virilidade, mas que Freddie Mercury pouco tempo depois eternizou como sendo algo não tão macho. Aliás, Freddie era um dos ídolos do bigodudo acidentado. Depois de conhecer Herbert, sempre repetia a ele que ‘Freddie Mercury não era um simples vocalista, mas um grande cantor’.

Isso era o mais próximo que Herbert conseguia chegar do mainstream. Não adiantava muito falar com seu novo amigo sobre música alternativa. Para ele, na verdade, isso pouco importava, porque ele representava para esse rapaz do hospital o mesmo que representava para Miro e Elvis. Era o carteiro legal. Pessoas como ele jamais poderiam ser pagos em vida na proporção em que merecem, pela postura e pelo comportamento exemplar que mantinham, fizesse chuva ou sol.

Leia o quarto capítulo deste conto na edição de amanhã.


• Escritor

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