sábado, 22 de setembro de 2012

Tinhoso – VII

* Por Fernando Barreto

Capítulo 7- The cradle will rock

Miro tinha um laptop que deixava escondido da vista dos amigos. Num apartamento tão pequeno como aquele, certamente enlouqueceria caso não pudesse matar algum tempo na internet quando estivesse sozinho. Também desistiria de ser escritor caso tivesse que trabalhar na lan house próxima a seu prédio. Aquele era o tipo de lugar que inspiraria o escritor sem ego, que precisa do mais absoluto caos para que consiga transformar em texto aquilo que vê de insano nas ruas, vivendo o calor do momento. Mas na maioria dos casos o escritor quer isolamento e alguma privacidade, porque escolhe esse ofício não pela arte em si, mas por ser alguém de natureza até certo ponto arrogante e com apreço pela reclusão, que não se sente à vontade em meio àquela camada social mais rasteira que pede cigarros nas ruas das cidades grandes, e que está imediatamente sobre a limbose urbana ou submersa nela. Acima de tudo há a aversão completa por empregos comuns.

A inspiração para escrever sobre toda essa baixeza vem quando esse tipo de escritor presencia as cenas enquanto está nas ruas e ausenta-se delas para escrever. Um meio termo entre uma e outra situação já deixaria Miro satisfeito, mas parecia difícil encontrar esse equilíbrio. Para isso seus amigos teriam que saber da existência do laptop, o que resultaria em transtornos, pois aqueles molóides iriam interrompê-lo em seu trabalho diariamente, pedindo o computador emprestado para inutilidades. Eventuais recusas por parte de Miro resultariam em mais transtornos ainda.

Ressentia-se um pouco por não ter a liberdade de usar seu laptop por mais tempo em sua própria casa, já que seus amigos iriam dominá-lo com acessos de baixa qualidade. Sabia, no entanto, que precisava desses caras por perto para que sua morada não virasse algo sem precedentes no que diz respeito à sujeira e baderna, então desligava o laptop quando alguém chegava. Era um milagre o fato de não ter sido descoberto, já que Elvis tinha a chave e não anunciava sua chegada previamente. Caso isso acontecesse, diria sem gaguejar que se tratava do laptop de uma amiga. Miro não se sentia confortável com a situação, mas achava que aquilo não era o suficiente para fazer dele um sujeito egoísta.

Seus escritos permaneciam inéditos. Disponibilizava-os na internet, mas isso não era o bastante. As pessoas precisam do papel impresso para que leiam adequadamente. Tentava encontrar algum consolo momentâneo nas biografias de escritores de que gostava, especialmente naquelas partes em que eles ainda eram totalmente anônimos e tinham suas histórias seguidamente rejeitadas pelos editores e pelas revistas, antes de eternizarem seus nomes e suas obras com a vitória no ramo literário.

Miro lembrou-se mais uma vez que as pessoas podem causar problemas de verdade (problemas que nada têm a ver com o anonimato e a dureza de grana com os quais ele sofre um pouco, mas que não o amarguram de verdade, já que é ele mesmo o responsável por esse setor de sua vida, e ele sabe bem disso) no dia em que Herbert, o carteiro legal, contou-lhe sobre o encontro que promoveu entre Elvis e o rapaz sequelado do ponto de táxi do hospital. Herbert havia contado a Elvis sobre os planos de Miro a respeito do projeto literário inspirado no rapaz do ponto de táxi. Miro antecipou-se na pesquisa a respeito da vida rapaz, e por intermédio de Herbert, conheceu sua morada num fim de semana, quando o tal rapaz estava de folga.

Faz-se necessário esclarecer que Elvis já não tinha mais esperanças de que um dia Miro resolvesse doar seu tempo para ensinar-lhe algo relativo à escrita, algum segredo relativo à técnica literária que Elvis pensava poder absorver. Não se tratava de descaso por parte de Miro, mas sim de uma sincera crença por parte dele de que não se pode ensinar alguém a ser escritor. Talento não se ensina, é algo nato. O que pode ser ensinado de fato é a técnica, e Miro acreditava que isso só se aprendia com os verdadeiros mestres, aqueles que já têm seus nomes imortalizados, e que expuseram esses macetes ao longo de suas carreiras. Devido às circunstâncias, a modéstia era necessária a Miro (ao não considerar-se um professor digno) não por preguiça, mas por pensar que seria ridículo expressar tamanha pretensão a um aspirante a escritor, condição essa na qual ele próprio se enquadrava, e não sem razão. Razão também não faltava a Elvis ao dizer que Miro queria ser músico, talvez mais do que ser escritor.

Elvis então resolveu que iria atrás do que considerava uma boa fonte de matéria prima para a literatura, e roubando a idéia de Miro, resolveu investir na exploração de uma história como a do rapaz do ponto de taxi do hospital, já que Herbert tinha lhe contado que Miro nunca colocava essa idéia na prática de verdade, adiando sempre a entrevista com o potencial protagonista da nova história. Elvis assimilou por conta própria, sem que Miro precisasse lhe dizer com todas as letras, que aprende-se a escrever lendo os bons, e depois de internar-se na leitura de ‘Anna Karenina’ e ‘Guerra e Paz’, anotando frases de efeito e bem elaboradas, Elvis partiu para a pesquisa de campo, com um bloco de anotação e tudo mais.

Herbert iria a um reduto indie ali pela região central da cidade num sábado à noite, e aceitou levar Elvis à casa do rapaz do ponto de taxi do hospital. Foi nesse dia que Elvis soube que o nome do rapaz acidentado era Bernardo (informação dada por Herbert antes de chegarem ao encontro). Elvis sabia que Miro não sabia o nome de Bernardo, e concluiu que se ele não tinha conhecimento a respeito do nome do sujeito, era porque o texto sobre ele era um projeto que estava longe de ser prioritário.

A idéia era que Herbert levasse Elvis até a pensão onde Bernardo vivia, apresentasse um ao outro, e quando a conversa entre eles engrenasse ao ponto de Elvis estar anotando de maneira nada discreta as informações a respeito de Bernardo enquanto este as pronunciava debilmente, então ele os deixaria sozinhos, para ver cenas um pouco mais bonitas, protagonizadas por garotas com franjinhas e camisetas do Depeche Mode ou dos Smiths e agasalhos Adidas.

Sucedeu-se exatamente dessa forma, e cerca de três semanas depois do encontro, Herbert foi abordado por um funcionário do hospital em frente ao qual Bernardo trabalhava, e contou-lhe que ele havia enlouquecido de verdade. Quando tomou conhecimento de alguns detalhes ocorridos com Bernardo pelo funcionário do hospital, Herbert logo pôde constatar que havia muito de Elvis nessa história. Contou a Miro, que imediatamente soube que Elvis havia dado drogas a Bernardo. Elvis justificaria isso alegando uma experimentação em nome da arte. Usava essa justificativa sempre que fazia algo que envolvesse drogas e bizarrice.

Bernardo não saía mais do seu quarto na pensão desde o encontro com Elvis, e ficava repetindo seu nome lentamente, com as sílabas bem separadas. ‘Beeerrr-naarrr-doooo, Beeerrr-naarrr-doooo !!!!’ . Era só isso o que o pobre rapaz ficava repetindo, olhando tristemente para um ponto abstrato num horizonte que não existia à sua frente, já que vivia num quarto de cerca de 15 metros quadrados, cuja janela era virada para o quarto de um velho militar aposentado, que tinha um espaço maior e com duas janelas, uma virada para o quarto de Bernardo, que ficava no fundo da casa, e outra para a rua. Esse sujeito passava o dia a lustrar medalhas e armas.

Pressionado por Herbert, Elvis confessou ter dado LSD a Bernardo. ‘Ele tomou só meio ácido!!!’, disse Elvis. ‘E foi para uma experimentação artística! Eu estava obcecado pelo modo como esse cara vivia e se comunicava. Tentei tirar as algemas que as limitações físicas e mentais lhe impunham. Por outro lado, sempre achei que ele parecia feliz. Ao menos era sorridente, e isso me intrigava. Ele vivia numa bolha, e isso era um tipo de proteção contra aberrações exteriores as quais todos nós somos diariamente submetidos. Tomei a outra metade do ácido e ficamos lá viajando, até dei uns CD’s pra ele. Sei que pode parecer loucura dar drogas pra um cara como ele, mas na hora não me ocorreu que ele pudesse tomar tarja preta e que pudesse ficar completamente alucinado, preso a outro plano completamente distinto do nosso pobre plano terreno. Ou talvez eu soubesse disso de forma subconsciente, o que me fez agir instintivamente’ - disse Elvis para Miro numa manhã em que o primeiro mais uma vez trazia o leite e os jornais. Foi o momento que marcou o primeiro encontro de ambos depois que Miro soube da história de Bernardo através do carteiro legal.

Foi nessa manhã que o interesse de Miro em escrever uma história baseada em Bernardo ressurgiu, com alguns complementos mórbidos, causados pelo devasso fator Elvis.
- Talvez você devesse ser internado no hospital da cadeia pra ter um corretivo. O Bernardo sofreu um golpe duro da vida, nós nem sabemos ao certo como e quando foi que ele sofreu o acidente, e ficou com seqüelas definitivas e depois tem que passar por esse tipo de situação. Você nunca se deparou com pessoas que têm medo de tomar ácido conscientemente? Como você dá metade de um ácido pra esse cara? Elvis, você precisa de tratamento contra as drogas, contra o álcool e contra sua insanidade. Você é um louco perigoso. Eu fico de cara com certas coisas que você faz. Algumas delas eu gostaria de fazer também, mas você passa dos limites com muita frequência.– disse Miro.
- Só fui internado uma vez na vida, para fazer uma cirurgia de redução de pênis. Depois disso as mulheres deixaram de ficar totalmente chocadas. A operação foi um sucesso – Elvis respondeu.

Miro disse:
- O Herbert me contou que você ia escrever sobre o cara, roubar minha idéia. Você sabe bem que estou cagando pra isso, e já que você quer fazer, que faça a coisa bem feita. Eu estava me preparando para começar a escrever o romance definitivo da brasilidade. De qualquer forma, você adicionou uma dose cavalar de brasilidade no contexto e agora talvez seja o momento ideal para começar a trabalhar. E já que você deu ácido pro infeliz, deve ter alguma intimidade com ele, mesmo que ele esteja igual ou pior que o Syd Barrett. Só fico meio preocupado com o fato da história parecer surreal demais, a ponto de parecer forçada e desinteressante para a literatura. A propósito você fez alguma anotação quando estava dentro do quarto do cara? Algo que possa ser aproveitado no texto?
- Sim, mas eu não consigo achar o bloco onde anotei. Dias atrás resolvi que começaria a escrever meu próprio livro e vi que perdi a porra do bloquinho de anotações. Talvez tenha largado no quarto do Bernardo. O Herbert tinha me dito na ocasião do ácido, antes dele sair pra caçar moderninhas, que era uma indiscrição da minha parte anotar o que Bernardo dizia, pois eu estava sentado bem na frente dele e não disfarçava o que eu estava fazendo. Era ele falando e eu anotando. Eu anotava também coisas relativas a detalhes do quarto dele, características gerais do meio em que ele vive, do modo como faz as coisas. É evidente que Bernardo não estava nem ligando pro fato de eu estar fazendo anotações, talvez nem estivesse percebendo. Se soubesse o que estava rolando talvez achasse bom, principalmente se soubesse que seria protagonista de uma história escrita para inaugurar um novo gênero literário, novo ao menos no Brasil, um gênero que não exalta a brasilidade, apenas a utiliza como referência negativa. Um tipo de crítica expositiva, sobre as chateações pelas quais passamos. Não um estudo, mas apenas uma exposição mesmo, que também não poderia ser considerada essencialmente política. Mas infelizmente o fato é que eu pelo jeito perdi as anotações. Quando o ácido bateu, provavelmente aquilo perdeu a importância inicial, e eu estava no quarto pirando com o doidinho que parece o Magnum. A essência da história que escreveríamos estava diante de mim, e me satisfez sem que fosse preciso transformar em palavras. Perdeu-se em arte, mas foi algo vivenciado. De qualquer forma consigo relatar o que aconteceu ali naquele dia, e posso levá-lo até lá para conhecê-lo. Pelo que soube, ele não é mais o mesmo. É claro que quando eu saí de lá eu estava vendo-o enlouquecido, mas achei que a brisa ia passar. Eu sei que você notou, ainda que inconscientemente, que Bernardo não tem aparecido na frente do hospital. Você não fez nenhum comentário a esse respeito, caso contrário eu teria contado a história até onde eu sabia. Mas eu não sabia que ele não tinha voltado da viagem do ácido. Estou preocupado – disse Elvis.
- Não é pra menos, meu caro. A coisa pode azedar pra você. Acho que devemos averiguar o estado em que ficou o doidinho. Se você tiver alguma sorte as pessoas podem achar que foi apenas um agravamento ou um desdobramento do problema que ele já tinha, e não algo adquirido com aditivos alucinógenos. Mas agora não vou ter nem um depoimento do cara a respeito do que ele fazia antes – observou Miro.
- Ele não fazia nada além daquilo que você já sabe. Era uma criança, agora é mais sequelado que um Brian Wilson, ou Syd Barrett. Está lá janjulando mais do que nunca. O fato é que ele gosta de Hard Rock. Tem um pôster do Venom e um do Van Halen da fase David Lee Roth numa parede do quarto. A vida é mais importante que a arte, e eu pude constatar pessoalmente que se o doidinho fosse retratado literariamente, seria algo brutal. Um cotidiano duro. Uma vida travada pelas dificuldades. Era um cara sorridente. O que me preocupa é o risco dele perder isso. O Herbert me disse que ele perdeu e que está numa brisa sem volta. Minha performance como artista de palco pode ser influenciada por ele. Digo, pela maneira como ele ficou depois do ácido. Eu ainda não o vi. Não posso negar que quando Herbert me abordou meio indignado, já sabia do que se tratava – explicou Elvis;
- Vamos até a casa do Bernardo – ordenou Miro;
- Você sabe que ele vive numa pensão. A dona pode descobrir a razão da loucura definitiva do cara, caso não tenhamos uma justificativa apropriada para a visita – ponderou Elvis;
- Nós vamos dizer que a razão da visita é justamente o fato do cara ter ficado mais alucinado do que já era – disse Miro.
- Sim, e isso aconteceu quando eu o visitei pela última vez. A dona da pensão vai associar minha visita anterior à decolagem do doidinho. Você poderia ir até lá sozinho, ou com o Herbert. A mulher já grilou comigo porque levantei com o pé a tampa da privada do banheiro coletivo da pensão – desculpou-se Elvis.
- Como você fez para que ele tomasse o ácido? – perguntou Miro.
- Apenas dei a ele e pedi que colocasse debaixo da língua. Como ele não questionou e obedeceu imediatamente, coloquei também o ácido na boca e praticamente esqueci de todo o resto e só fiquei esperando a brisa bater, e eu não sei qual foi o momento em que ele começou a ficar fora do que era o seu normal. O normal dele é ser doido. Não pude identificar o momento exato em que ele ficou ainda mais alucinado. Talvez a brisa tenha chegado simultaneamente para nós dois. Saí de lá quando fiquei com vontade de tomar uma cerveja na rua. Deixei-o em seu quarto. Há muito pouco espaço lá, e talvez por isso ele tenha entrado em parafuso. Na hora em que eu saí, isso não tinha me ocorrido. Eu poderia tê-lo levado para dar um rolê, mas naquele momento eu já nem fazia mais anotações e tinha deixado para trás a razão inicial da visita, que era colher material para uma história literária, de modo que ele ficou num cubículo, pirando e sem saber o que estava acontecendo, enquanto eu tomava um pouco de vento para espairecer. Estava doidão de ácido, já via o mundo colorido e deveria deixar de lado meu ego, no entanto larguei o infeliz alucinando sozinho. Nesses dias em que ele esteve recluso, não havia dia em que não pensasse no que podia ter acontecido. O que posso dizer para advogar em minha própria causa é que enquanto estávamos ouvindo som e conversando, ele parecia estar se divertindo de verdade. Ele tem uma peruca que parece o cabelo do King Buzzo, dos Melvins, e ficava dançando alucinadamente a cada música que escolhia para ouvirmos. É melhor irmos lá ver como ele está. Suas condições devem estar dignas de serem registradas. Você pode escrever sobre ele. Vou procurar outro protagonista. Você merece ter Bernardo como o herói ou protagonista de seu romance. Por falar nisso, está na hora mesmo de você escrever um romance ao invés de ficar dizendo que é um contista, e que gosta de escrever histórias curtas. Afinal, você não tem culhões para dedicar-se a um trabalho que requer concentração por mais tempo? Eu sei que você consegue. Você ainda não é consagrado, pode usar o material que já escreveu e reaproveitar algumas partes. Você não deslanchou com seus contos ainda, pode lançar um romance primeiro, e depois lançar uma coletânea de contos, onde fãs e curiosos poderão entender como as histórias curtas serviram de laboratório para sua primeira grande obra. Não temos revistas literárias decentes para publicar contos. Você os publicou da maneira mais underground possível, com aquelas cópias em folhas de sulfite, e foi legal, mas está na hora de dar um passo adiante – sugeriu Elvis.
- Lembra daquele pastor pilantra que dava hóstias com LSD? – indagou Miro.
- Lógico, Pastor Jarbas!!! Ídolo Absoluto!!! Que fim levou? – perguntou Elçvis por sua vez.
- Adoraria saber... Deve estar preso, ou morto, ou morando num sítio na Finlândia, bem loucão de ácido, matando seres da floresta – disse Miro.

A verdade é que Elvis omitiu um fato importante. Tinha descoberto que Bernardo, apesar das seqüelas do acidente, era um compositor que lembrava o que havia de melhor em Brian Wilson, Alex Chilton e Arthur Lee. Tinha em casa um violão barato e um teclado de brinquedo. Tocou e cantou para Elvis algumas canções realmente emocionantes. Algumas delas eram composições próprias, e outras eram covers de artistas obscuros de que gostava.

Elvis queria roubar-lhe as músicas, e para isso tomou emprestado o teclado de brinquedo onde algumas melodias estavam gravadas. Estava tentando guardar na cabeça algumas das músicas tocadas por Bernardo no violão. O ácido bateu e então ele resolveu que numa outra ocasião pediria a Bernardo que as tocasse novamente, para que pudesse aprendê-las, gravá-las e anunciar-se como o compositor dessas músicas. Brito, Valente e Miro ficariam surpresos com a genialidade do verdadeiro Elvis.

Leia o oitavo capítulo deste conto na edição de amanhã.

• Escritor

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