sábado, 16 de junho de 2012

Conversando com minha mãe II- Elinora


* Por Urda Alice Klueger

(Para Sérgio de Azeredo Coutinho, um primo quase desconhecido)

Sabe, mãe? De novo é um assunto que não tenho com quem conversar. Foi a Elinora. Ela partiu hoje, e eu estou chorando. Estavam lá os filhos do tio Júlio, mas depois cada um foi para a sua casa e não há mais ninguém que se interessaria em ouvir falar de uma velha prima que esteve sempre por perto na minha vida. Eles também estavam tristes e tinham coisas para contar, como, por exemplo, os Rollmops que a Elinora dava ao Afonso a cada aniversário, ano após ano. O aniversário do Afonso é a 21 de dezembro, eu lembro, mas nunca imaginei que a Elinora fizesse Rollmops para ele. Aquele jeito dela, simples, delicado, elegante e cheio de vida era bem um jeito de quem fazia coisas assim.

A Elinora esteve na minha vida desde muito cedo. Era ainda no tempo da casa da rua Amazonas, perto do Cine Garcia, a casa da tia Paula North, irmã do tio Júlio Klueger. Nem sei que idade eu tinha, mas era muito pequena. A gente ia lá na tia Paula para ganhar carambolas, pois, ao menos na minha lembrança, a casa era rodeada de pés de carambola. A mãe lembra como depois fazia compota com as estrelinhas translúcidas das carambolas, naqueles vidros que fechavam com borrachinhas? Era aquela a sobremesa dos dias em que havia visita!

Pois naquele tempo a Eleonora era uma moça um pouco pálida, delgada e bem humorada, que usava elegantes vestidos claros que ela mesma costurava e que sempre era simpática comigo, uma criança que ficava um pouco acanhada diante da tia Paula.

Um dia, penso que na altura em que eu estava para entrar na escola, a Elinora mandou convidar para a inauguração da nova casa dela, no bairro Ponta Aguda, e fomos lá, e tudo era tão bonito e tão chique! Era uma tarde de festa; a casa estava lotada e todos comentavam sobre o grande bom gosto da Elinora ao fazer aquela casa moderna. Era final de tarde quando voltávamos para o centro de Blumenau, e a mãe se lembra como as ruas que hoje chamamos de República Argentina e Avenida Brasil eram dois carreiros de terra cheias de capim, e onde os dois carreiros se cruzavam, um punhado de galinhas ciscava despreocupadamente enquanto o seu galo cantava?

Quanto tempo, quanto tempo... Então, não sei os detalhes, a Elinora se apaixonou pelo João Coutinho e nem tomou conhecimento das críticas étnicas que rolaram aqui e ali – como é que uma North, neta de Klueger, ia casar-se com um “brasileiro”? Eu sabia muito bem na pele como eram essas críticas étnicas, já que meu pai também se casara com uma “brasileira”, né, mãe? Nem vale a pena começar a falar aqui sobre tal assunto, tamanha a ignorância que abrange – sei que a Elinora casou com o João Coutinho e foi feliz, e teve o Sérgio, o único filho, que eu só tinha visto uma vez, quando ele era criança. A mãe chegou a conhecer o Sérgio?

Conforme eu fui conhecendo o João, fui gostando cada vez mais dele, talvez pelo nosso gosto comum pela História. O João teve o cuidado de pesquisar cuidadosamente quem tinham sido os 32 tataravôs do seu filho Sérgio, para lhe deixar a informação como herança. E eu embarquei na pesquisa dele, e muita coisa que sei hoje sobre minha própria família vem da pesquisa do João. Conforme fui aprendendo História fui entendendo quem era aquele “brasileiro”: João se chamava Azeredo Coutinho, vinha de uma das mais antigas famílias do país – quanto tempo perdido com frissons étnicos, a mãe que o diga! E sempre estava presente a Elinora, corajosa, doce e meiga, tendo a coragem de viver a vida do jeito que gostava – não consigo imaginá-la pensando essa coisa tão comum de “o que é que os vizinhos vão dizer?”!

Nem sei tudo onde estava a Elinora: havia visitas esporádicas de cá e de lá – foi numa destas que vi o Sérgio menino. Penso que a gente ia na casa dela, também, para ver a tia Paula – e ela e o João apareciam lá na praia, quando nos mudamos para lá. E a vida passou. Nos últimos anos, estive mais perto da Elinora do que antes. Houve as festas da família Klueger e, provavelmente, o meu próprio amadurecimento.

Lembro quando, há seis anos atrás, fui votar e encontrei a Elinora fazendo a mesma coisa. Encontramo-nos na Rua XV, e ela me disse que já estava chegando aos 80 anos, o que me deixou pasma: nunca percebera que ela mudara em alguma coisa, e é claro que não mudara mesmo: piscou um olho para sussurrar-me o nome do candidato em que votara. Linda e maravilhosa Elinora, sempre na vanguarda do seu tempo, talvez a pessoa que eu quisesse ser.

Depois das Águas de 2008, um dia conversei muito com a Elinora na Ponta Aguda. Foi uma conversa comprida, como se tivéssemos a mesma idade, e devia ser isso mesmo, já que ela nunca envelheceu. Uma das coisas que me contou foi que provavelmente uma pequena aranha se escondera dentro da sua luva de jardinagem e a mordeu, causando-lhe cansativos e doloridos dissabores de saúde.

Duas semanas atrás, num sábado de manhã, passei pela casa da Elinora com meu cachorro, e pensei em bater, conversar um pouquinho, mas não o fiz. Fico com muita pena, agora.

Sabe, mãe, hoje, lá no velório, transido de dor, estava o Sérgio, esse primo quase desconhecido. Se o encontrasse na rua, não saberia que era ele. Tinha feito as contas no caminho: o filho da Elinora e do João já deveria ter mais de 40 anos. A vida tinha voado para nós todos. E aquele Sério estava lá, tão cheio de dor que compreendi a grande mãe que a Elinora tinha sido. Fiquei a observá-lo de longe, a ver como ele se parecia com o pai dele, e ao mesmo tempo, como ele se parece com o primo Daltro Klueger, filho do tio Victor.

Despedimo-nos da Elinora debaixo de uma chuva de inverno e meu coração estava partido pela saudade antecipada dela e pela intensidade da dor daquele filho que ela teve com o João e a quem deve ter amado tanto! A dor dele era como que um punhal no meu peito. Era isto que eu queria contar para a mãe. Quem mais se interessaria em saber de tais coisas, em me ouvir lembrar das carambolas da casa da tia Paula, de como encontrara a Elinora voltando da eleição como uma mocinha, enquanto já beirava os oitenta anos e tudo o mais? Agora a Elinora partiu, mãe. Outro dia a gente conversa mais.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Que lindeza de conversa, Urda, como sempre transbordando as mais pungentes emoções e os mais nobres sentimentos. Também tenho tias como a sua, e tive uma mãe que também pode ter sido assim. Obrigada por me proporcionar esse passeio ao passado, que embora triste, no final trouxe uma sensação boa. Todos nós já vivemos momentos assim.

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