terça-feira, 19 de junho de 2012

Creio em Tupã

* Por José Ribamar Bessa Freire

Esta é a frase que abre a exposição do Museu da Índia Vanuire: - "Creio em Tupã". Acabo de ler a frase que se presta a diversas leituras, e é daqui que escrevo, do museu localizado em Tupã, uma estância turística no Oeste de São Paulo, onde passei a semana ouvindo as pessoas, inclusive os índios, falarem com o delicioso "r" caipira, que se pronuncia dobrando a língua para trás e tocando com a ponta dela o céu da boca.

Talvez o ex-ministro José Diiiirceu, quando mastiga assim o "r" de seu nome e prolonga a vogal que o antecede, não saiba que está usando uma língua indígena. Mas, num certo sentido, está. Esse "r" denominado pelos linguistas de "r" retroflexo, provavelmente vem de língua do tronco Jê que deixou marcas fortes no sotaque do português regional. Ninguém fala assim, nem em Portugal, nem em diversas outras regiões do Brasil.

Se Diiirrrceu ou o ex-governador Quéérrrcia não sabem que o "r" deles pode ser herança indígena, a Universidade sabe, porque pesquisa o assunto. A UNESP desenvolve o projeto ALIP - Amostra Linguística do Interior Paulista, montando um banco de dados que permite analisar o português de sete municípios. Acontece que os conhecimentos contidos nas teses e dissertações acadêmicas ficam, quase sempre, escondidos do grande público, que não toma conhecimento do inventário sobre as significativas contribuições das culturas indígenas para a formação da identidade brasileira.

Afinal, quem somos nós, os brasileiros? Esse foi um dos temas que me trouxe a Tupã, onde se realizou, de 30 de abril a 3 de maio, o I Encontro Paulista sobre Questões Indígenas e Museus e o III Seminário sobre Museus, Identidades e Patrimônio Cultural, promovido pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE). Fui convidado a trocar figurinhas com índios de várias etnias e com pesquisadores e gestores culturais de diversos lugares do Brasil, além de especialistas da Argentina, México, EUA e Itália.

Poder do Museu

O que fazer para que o conhecimento produzido pelos centros de pesquisa não fique escondido e seja socializado? Diferentes foros abordam o papel da escola, da universidade, da mídia, do cinema, das igrejas e dos sindicatos nesse processo. Mas aqui, nestes dois eventos, se tratava de discutir o papel dos museus, incluindo os museus universitários, o que conduz necessariamente a um conjunto de indagações sobre memória, patrimônio, identidade, coleções etnográficas, conservação e exposição, curadoria, políticas públicas, estrutura de organização e funcionamento da instituição, estudo da reação e do comportamento do público.

Ficamos sabendo, por exemplo, através de um diagnóstico realizado pelo Sistema Estadual de Museus (SISEM/SP) que existem 415 museus em São Paulo, visitados anualmente por mais de dois milhões e meio de pessoas. Entre eles está o Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuire, em Tupã, que sediou o seminário. Inaugurado em 1966, possui 38 mil peças de diferentes culturas indígenas do Brasil, incluindo objetos da cultura material dos Kaingang e Krenak, que ainda hoje habitam a região.

A cidade de Tupã foi fundada em 1929 por um empresário pernambucano Luiz de Souza Leão em terras que foram tomadas dos índios, depois que os bugreiros da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil invadiram as aldeias, devastaram as roças, queimaram os casebres e mataram homens, mulheres e crianças. Instaurou-se um clima de guerra e de terror. Baseado em documentação da época, conta Darcy Ribeiro:

"Os Kaingang de São Paulo relataram a seus pacificadores os esforços feitos para amansar grupos de trabalhadores da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil que avançavam através de seu território. Numa dessas tentativas, um dos chefes Kaingang caminhou desarmado ao encontro de uma das turmas, levando nos braços um filho pequenino como penhor de seus propósitos de paz. Foi recebido com uma fuzilaria, embora gesticulasse indicando a criança e mostrando que não trazia armas. Ainda assim, repetiu-se a descarga e um tiro prostrou a criança quando ele se retirava".

Foi aí que a índia Vanuire, levada pelo SPI do Paraná a São Paulo, serviu de intérprete falando e cantando na língua Kaingang. Conta-se que ela subia num tronco de jequitibá com dez metros de altura, onde permanecia do nascer do dia ao cair da tarde, entoando canções em favor da paz. Desta forma, com a música, ela contribuiu para cessar as hostilidades e no dia 19 de março de 1912 foi assinado uma espécie de armistício entre os Kaingang e os invasores de seus territórios.

Os Kaingang e o Museu

As terras Kaingang foram, então, integradas ao sistema legislativo nacional sob a forma de propriedades particulares. O senador Luís Piza, que nunca colocou os pés nelas, registrou-as como suas, vendendo-as por alto preço.

"A pacificação representava para o senador uma das mais fabulosas especulações: terras que comprara a preço inferior a dez cruzeiros o alqueire, após a confraternização com os índios, passaram a valer cem cruzeiros, cento e cinquenta e mais tarde, mil e até dez mil cruzeiros" - escreveu Darcy Ribeiro em seu livro "Os Índios e a Civilização".

A índia Vanuire, que contribuiu para o fim do conflito armado e das matanças contra os índios, morreu em 1918, na aldeia Kaingang de Icatu, na região de Araçatuba, depois de ter contribuído, na visão dos índios, para pacificar os "brancos". Foi por isso que a cidade de Tupã escolheu o seu nome para denominar o museu histórico.

O Museu Índia Vanuire incorporou em suas atividades a participação dos índios que habitam hoje a região e que compareceram ao evento para tomar conhecimento de experiências de outras partes do Brasil e de outros países. Discutiu-se, por exemplo, os museus indígenas do Ceará, entre os quais o Museu Cacique Sotero dos Índios Canindé, o Museu Maguta, dos Ticuna no Alto Solimões, e o Museu Kuahi, dos índios do Oiapoque. Além disso, foram feitos relatos sobre museus comunitários no México e museus etnográficos na Argentina e nos Estados Unidos.

Os índios, agora, estão incorporando rapidamente ao seu discurso um conjunto de conceitos - “patrimônio”, “reserva técnica”, “restauração” e outros que fazem parte da literatura especializada. Eles descobriram o museu e estão aprendendo como fazê-lo. Não está longe o dia em que haverá índios especializados nesta área, com curso universitário, como já ocorre no Canadá.

O conceito de ‘museu’, que vem sendo refinado pelos museólogos, tem sido também discutido pelos índios. Quase todos identificam a instituição como um lugar de conhecimento, de pesquisa, de estudo, de guardião da memória. No entanto, os índios, agora, não aceitam mais passivamente que os museus construídos por não-índios tenham o monopólio do discurso histórico que lhes diz respeito. Querem deixar de ser apenas um objeto musealizável e serem também - eles próprios - agentes organizadores de sua memória.

A exposição do Museu Índia Vanuire abre com uma frase do fundador da cidade de Tupã, Luiz de Souza Leão: "Creio em Tupã", passível de várias leituras, tanto se referindo ao município, com seus empreendimentos e a rentabilidade de seus negócios, como pode também apontar para a contribuição das culturas indígenas em sua formação histórica.

Quérrrcia já morreu, mas Dirrrceu, com a graça do bom Deus, está vivo, vivíssimo. Quem sabe se o museu cumprir seu papel informativo, Dirceu poderá descobrir a origem do "r" caipira e passará a acreditar mais em Tupã. Ele e todos nós.

P.S. 1 - Os eventos aqui citados foram organizados pelo MAE - Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, pela Secretaria de Estado da Cultura, através de sua Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico e pela Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari. Todo o evento pode ser acessado através do link:
 
P.S. 2 - Dias antes da abertura do seminário, no Maranhão, a cacique Maria Amélia Guajajara, 52 anos, foi executada na tarde do dia 28 de abril, por pistoleiros que chegaram em uma moto na aldeia e na frente de todos, inclusive da família da vítima, dispararam dois tiros em sua cabeça. Ela era cacique da aldeia Coquinho II, na Terra Indígena Canabrava, municipio de Grajau, a 600 quilômetros de São Luís. Foi assassinada porque denunciava a exploração ilegal de madeiras dentro da terra indígena, o tráfico de drogas e os constantes assaltos na região, segundo Alice Pires, coordenadora do Jornal Vias de Fato.

• Jornalista e professor

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