Kaputt
* Por Rubem Costa
Em recente acontecimento cultural, a Academia Campineira de Letras, Ciências e Artes das Forças Armadas prestou homenagem a um dos raros remanescentes da tropa expedicionária brasileira que em 1945 combateu na Itália contra o nazifascismo.
Comparecendo para receber a outorga, o homenageado — já agora major reformado do exército nacional — não escondeu a sua originária condição de homem simples que partiu para a luta armada na modesta condição de padioleiro, função melancólica que é — e sempre será — a de erguer cadáveres e carregar feridos que tantas vezes nem sabem por que foram parar no campo de batalha.
Alquebrado pelos anos, maltratado pela vida, aquele homem simples estava ali para ser premiado com o galardão de herói. Foi assim que Arita, presidente da entidade, emocionada o apresentou à assembleia. E o fez dando conotação de certeza ao gesto quando trouxe à memória o quadro dantesco da tomada de Montese, instante cruciante de sangue e horror em que o padioleiro, no seu destino de recolher destroços, também caiu ferido.
Na fala da presidente entrevi a dialética trágica da guerra, confronto de interesses materiais fantasiados de sonhos, vereda de rebanhos enviados ao matadouro na marcha inexorável dos milênios. Olhei o velho soldado e pressenti nas rugas de seu rosto as tatuagens do desencanto, cicatrizes de um momento trágico da humanidade que calou no ser o sentido da bondade.
Contemporâneo também eu das angústias de uma terra em transe, quando cada minuto era uma ameaça e o medo tomou conta do homem, talvez tenha sido dos poucos a apreender a importância da outorga ao homem simples. Compreendi o conflito místico que se instalava ali no tumultuar de sentimentos diferentes.
É que, naquela hora solene de discursos, enquanto a plateia composta de gerações recentes se deleitava em ouvir apenas uma história de guerra, ele, com certeza, padioleiro que carregou feridos e ergueu cadáveres, revia a vida, a própria existência se estiolando sob o silvo das batalhas. E eu — que na banca do jornal acompanhei toda a tragédia de uma era desolada — o compreendi, padioleiro sofrido, na grandeza de seu sonho e na tristeza de suas lembranças.
***
Por inafastável associação de ideias, assomou-me à memória o travo amargo que no pós-guerra assolou o mundo, quando a Europa era então um continente de geografia devastada e esperança destruída.
Diante da tragédia, na Itália irrompe nos escritores que se formaram nos anos desolados do fascismo um terrível sentimento de revolta contra o sacrifício daqueles valores particularmente caros a um povo de índole lírica, para quem conflito trouxe um cortejo doloroso de decepções e desapontamentos, matando no homem comum a alegria espontânea e vivaz, para deixar, na vala aberta da descrença o sabor azedo do ceticismo.
É um retrato da decomposição, cujo cheiro acídulo se esparge ainda no mundo contemporâneo, que encontramos em páginas de angústia como as de Ignazio Silone, escritor marcado pela dor de seu povo, que no romance gris — A Semente sob a Neve — acentua os traços caricaturais de um regime desregrado onde se assinalam os momentos mais grotescos da história moderna. Desaponto de um povo na hora da derrota, situando em termos regionais o universal, decepção de uma gente que só transcendeu vigorosa a derrota porque acima de tudo é simplesmente humana.
Já em Curzio Malaparte prevalece fundamentalmente o sentido cósmico da guerra, a visão global de um mundo que se engolfou na ira, no rancor e no ódio, na negação essencial da pessoa humana. Uma era apocalíptica que conheceu de perto o caos.
Jornalista que, envergando a farda de oficial italiano, cobriu os combates das forças do “eixo”, misturando-se a soldados, prisioneiros e guerrilheiros em cidades e aldeias arrasadas, Malaparte polarizou em Kaputt (termo que em alemão significa quebrado, destruído, arrasado) a imagem panorâmica de uma Europa vencida e humilhada, debochadamente nua, entregue à angústia e ao desespero diante da derrocada de suas tradições milenares de cultura.
Continente que conheceu a devastação nazista, os guetos, os pogroms, os campos de concentração, as câmaras de gás e a vergonha do homem espoliado de sua dignidade. Fotografia sem retoque de um tétrico momento da história, tomada em grande angular, quando pareciam irremediavelmente perdidas todas as possibilidades de redenção do ser.
No caos que o livro retrata, apenas uma breve chama fica brilhando no fundo da noite pesada: a esperança dos humildes. Estes acreditam — e acreditarão sempre — que a mão de Deus não se esconde eternamente, ou como diz o autor, esperam que o salmão termine um dia por vencer Siegfried, dono da espada, senhor do mundo e da guerra. Essa é uma das muitas histórias extraordinariamente humanas que aparecem no livro, escrito há sessenta anos, retratando a luta desigual da força e da violência contra os fracos e desprotegidos. Kaputt, como o define o próprio Malaparte, é um livro horrivelmente alegre e cruel.
É uma definição estranha, mas dolorosamente exata do burlesco, drama de um mundo arruinado em que as palavras de caridade soam falsas, afogando o afeto nas águas lamacentas da descrença. O ridículo de um universo que não aprendeu com a história, um mundo que depois de Hiroshima e Nagasaki, se engolfa ainda em ingrata polêmica para saber quem tem o direito de sustentar a mensagem da destruição (kaputt) nas usinas nucleares.
Romance de um momento trágico em que herói (e vítima) será sempre o homem anônimo das ruas, padioleiro que recolhe dos escombros da amarga estrada os despojos da incompreensão e do ódio.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
* Por Rubem Costa
Em recente acontecimento cultural, a Academia Campineira de Letras, Ciências e Artes das Forças Armadas prestou homenagem a um dos raros remanescentes da tropa expedicionária brasileira que em 1945 combateu na Itália contra o nazifascismo.
Comparecendo para receber a outorga, o homenageado — já agora major reformado do exército nacional — não escondeu a sua originária condição de homem simples que partiu para a luta armada na modesta condição de padioleiro, função melancólica que é — e sempre será — a de erguer cadáveres e carregar feridos que tantas vezes nem sabem por que foram parar no campo de batalha.
Alquebrado pelos anos, maltratado pela vida, aquele homem simples estava ali para ser premiado com o galardão de herói. Foi assim que Arita, presidente da entidade, emocionada o apresentou à assembleia. E o fez dando conotação de certeza ao gesto quando trouxe à memória o quadro dantesco da tomada de Montese, instante cruciante de sangue e horror em que o padioleiro, no seu destino de recolher destroços, também caiu ferido.
Na fala da presidente entrevi a dialética trágica da guerra, confronto de interesses materiais fantasiados de sonhos, vereda de rebanhos enviados ao matadouro na marcha inexorável dos milênios. Olhei o velho soldado e pressenti nas rugas de seu rosto as tatuagens do desencanto, cicatrizes de um momento trágico da humanidade que calou no ser o sentido da bondade.
Contemporâneo também eu das angústias de uma terra em transe, quando cada minuto era uma ameaça e o medo tomou conta do homem, talvez tenha sido dos poucos a apreender a importância da outorga ao homem simples. Compreendi o conflito místico que se instalava ali no tumultuar de sentimentos diferentes.
É que, naquela hora solene de discursos, enquanto a plateia composta de gerações recentes se deleitava em ouvir apenas uma história de guerra, ele, com certeza, padioleiro que carregou feridos e ergueu cadáveres, revia a vida, a própria existência se estiolando sob o silvo das batalhas. E eu — que na banca do jornal acompanhei toda a tragédia de uma era desolada — o compreendi, padioleiro sofrido, na grandeza de seu sonho e na tristeza de suas lembranças.
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Por inafastável associação de ideias, assomou-me à memória o travo amargo que no pós-guerra assolou o mundo, quando a Europa era então um continente de geografia devastada e esperança destruída.
Diante da tragédia, na Itália irrompe nos escritores que se formaram nos anos desolados do fascismo um terrível sentimento de revolta contra o sacrifício daqueles valores particularmente caros a um povo de índole lírica, para quem conflito trouxe um cortejo doloroso de decepções e desapontamentos, matando no homem comum a alegria espontânea e vivaz, para deixar, na vala aberta da descrença o sabor azedo do ceticismo.
É um retrato da decomposição, cujo cheiro acídulo se esparge ainda no mundo contemporâneo, que encontramos em páginas de angústia como as de Ignazio Silone, escritor marcado pela dor de seu povo, que no romance gris — A Semente sob a Neve — acentua os traços caricaturais de um regime desregrado onde se assinalam os momentos mais grotescos da história moderna. Desaponto de um povo na hora da derrota, situando em termos regionais o universal, decepção de uma gente que só transcendeu vigorosa a derrota porque acima de tudo é simplesmente humana.
Já em Curzio Malaparte prevalece fundamentalmente o sentido cósmico da guerra, a visão global de um mundo que se engolfou na ira, no rancor e no ódio, na negação essencial da pessoa humana. Uma era apocalíptica que conheceu de perto o caos.
Jornalista que, envergando a farda de oficial italiano, cobriu os combates das forças do “eixo”, misturando-se a soldados, prisioneiros e guerrilheiros em cidades e aldeias arrasadas, Malaparte polarizou em Kaputt (termo que em alemão significa quebrado, destruído, arrasado) a imagem panorâmica de uma Europa vencida e humilhada, debochadamente nua, entregue à angústia e ao desespero diante da derrocada de suas tradições milenares de cultura.
Continente que conheceu a devastação nazista, os guetos, os pogroms, os campos de concentração, as câmaras de gás e a vergonha do homem espoliado de sua dignidade. Fotografia sem retoque de um tétrico momento da história, tomada em grande angular, quando pareciam irremediavelmente perdidas todas as possibilidades de redenção do ser.
No caos que o livro retrata, apenas uma breve chama fica brilhando no fundo da noite pesada: a esperança dos humildes. Estes acreditam — e acreditarão sempre — que a mão de Deus não se esconde eternamente, ou como diz o autor, esperam que o salmão termine um dia por vencer Siegfried, dono da espada, senhor do mundo e da guerra. Essa é uma das muitas histórias extraordinariamente humanas que aparecem no livro, escrito há sessenta anos, retratando a luta desigual da força e da violência contra os fracos e desprotegidos. Kaputt, como o define o próprio Malaparte, é um livro horrivelmente alegre e cruel.
É uma definição estranha, mas dolorosamente exata do burlesco, drama de um mundo arruinado em que as palavras de caridade soam falsas, afogando o afeto nas águas lamacentas da descrença. O ridículo de um universo que não aprendeu com a história, um mundo que depois de Hiroshima e Nagasaki, se engolfa ainda em ingrata polêmica para saber quem tem o direito de sustentar a mensagem da destruição (kaputt) nas usinas nucleares.
Romance de um momento trágico em que herói (e vítima) será sempre o homem anônimo das ruas, padioleiro que recolhe dos escombros da amarga estrada os despojos da incompreensão e do ódio.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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