sexta-feira, 18 de junho de 2010




Grafite, o vitorioso

* Por Urariano Mota

Quando a televisão anunciou a seleção de Dunga e vi a imagem de um guerreiro alto, altivo e talentoso, a minha memória deu um salto a gritar em silêncio: “viva, finalmente”. Ao ver Grafite entre os selecionados, lembrei e guardei alguns fatos, à espera dos jornais do outro dia. No entanto, nada, nada houve nos jornais depois que recuperasse momentos essenciais na vida desse jogador.
Nos jornais dos novíssimos tempos a memória deixou os repórteres e migrou para os arquivos, que raro são buscados. Restaram repórteres sem história e sem desconfiômetro, que nem suspeitam de que os famosos não nasceram no momento da notícia. Por isso destacaram a declaração de Dunga, sem qualquer moldura ou explicação:
“Tem jogadores que jogam cinco minutos e aproveitam. Tem pessoas que têm inúmeras oportunidades e acham que sempre vão ter a próxima. Você não quer que o jogador chegue e arrebente, mas eu quero que, quando ele coloque aquela camisa, tenha uma postura de campeão, a mesma personalidade do clube. Ele fez isso”.
Os jornalistas do dia nem imaginaram que a personalidade de Grafite nasceu antes, quando vestia a camisa do São Paulo contra o Quilmes, equipe argentina, em 13 de abril de 2005. Naquela ocasião, ele denunciou o jogador Desábato (alguma notícia do bravo?) por crime de racismo. Em artigo para o site espanhol La Insignia, escrevi então no texto Grafite, o negro, http://www.lainsignia.org/2005/abril/soc_008.htm :
“Quando o jogador Grafite, da equipe do São Paulo, foi chamado de ‘negro de mierda’, de ‘mono negro’, os dirigentes do Quilmes, time argentino, nada viram nisso que merecesse uma denúncia policial. Qué pasa? ‘Si Grafite se va a ofender porque alguien le dice una grosería, entonces que vaya a jugar con las muñecas. No es para el fútbol’. E para esse espanto, para essa estranheza, compreendemos-lhes alguma razão. Ora, desde a Guerra do Paraguai, no século XIX, que argentinos chamavam às tropas brasileiras, fortalecidas por negros bons de morrer, então escravos, de ‘macaquitos’. A alcunha pegou, e mais voltava e volta nos conflitos, sempre que se desejava e deseja ressaltar as diferenças entre latinos miscigenados, negros, e os latinos menos misturados, os argentinos, que Jorge Luís Borges dizia serem os únicos europeus conhecidos em sua vida...
Para não ir muito longe, lembramos que em 1996, ao saber que a seleção de futebol argentina iria jogar contra a seleção do Brasil ou da Nigéria, assim anunciou os adversários o periódico Olé: ‘Que venham os macacos’. Ora, é natural. Negros, macacos, tudo a ver. Tão natural quanto primos pobres que se insultam, que não se reeducam nem na desgraça, nem mesmo quando a RAF lhes mostra que todos são macacos. Daí que compreendamos que chamar a um atleta negro, que leva o nome de Grafite, de negro de mierda, de negro hijo de puta, e temperar tais naturalidades com cuspidas em seu rosto, nada é demais, para alguns periodistas argentinos. E que completem, mui britanicamente, que faltou a um simples negro o low profile...
Que pasa? Então os negros deixaram de ser negros? Então deixaram de ser negros de merda, negros filhos de uma puta, monos, macaquitos, como sempre o foram há décadas? ‘Fueron expresiones que son comunes en un estadio cuando hay fricción e semejante nível de adrenalina’, explicou, pensou em justificar uma autoridade do governo argentino, o Ministro do Interior Aníbal Fernández...
Então por aqui terminamos. Mas não saio antes de te dizer, Grafite, que este artigo foi escrito com o coração apertado no espírito, para que do teclado brotassem apenas palavras isentas, ponderadas, serenas. No entanto compreenderás o quanto me segurei, se souberes que o tempo todo ouvia uma composição de Pixinguinha, o chorinho 1 x 0. O que em letras convencionais quer dizer: Um a zero fizeste para nós, Grafite. Que belo gol, homem, os negros de todo o mundo se levantam nos estádios”.
Agora, neste 2010, com a sua convocação Grafite faz mais um gol. Belo será ver os africanos de pé saudando mais uma estrela. Dois a zero.

Nota : Caros amigos: com a inestimável ajuda técnica de minha filha, estou construindo uma página onde reúno textos que, a meu ver, sobrevivem ao momento breve em que foram escritos. Está aqui http://urarianomota.wordpress.com/ Ainda está no começo, mas acho que vocês vão rir e se emocionar e ter raiva.

• Jornalista e escritor

3 comentários:

  1. Lembro-me bem desse jogo e fiquei tão p...
    quanto ele. Não pela referência em ser negro, mas
    pela impáfia e do desrespeito ao se dirigir
    ao Grafite daquela maneira, como se ele fosse
    um ser superior. Adorei o desfecho ao ver o
    galinho de briga com a crista baixa.
    Ótimo texto.
    Abraços

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  2. Os Argentinos têm se mostrado maiores em tudo em relação aos brasileiros. Em muitos quesitos, os nossos números ficam atrás dos deles, especialmente em assuntos desabonadores, mas deixa pra lá. Afinal são nossos vizinhos. E muitos deles já sofreram demais também.

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  3. Quer dizer que só nós, "os subdesenvolvidos, los macaquitos" temos leis contra os preconceitos, Urariano? Nâo sabia disso. Acho que uma manchete de jornal como essa que cita "Que venham os macacos" deveria ter merecido a intervenção do nosso ministro de Relações Exteriores. É um horror saber que isso aconteceu impunemente. É lamentável!

    Forte e solidário abraço

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