domingo, 27 de junho de 2010




O louco e as formigas

* Por José Paulo Lanyi

Certa tarde no Ibirapuera. Eu, o meu cachorro, uma árvore. Dez passos à frente, um sujeito, olhos na terra, para lá e para cá...

I

Louco
Tela cubista no outono do parque
Mendigo de óculos de cordinha
Meu tio, me parece
Louco ou mendigo
Meu tio
De óculos
E cordas
Passos atrás,
Eu
Beira de árvore
Louco ou mendigo?
Cachorro sentado
Silêncio
Cabeça vazia
Estranho
Assim
Não sou
Quietude inquietante
Assim não sou
Louco sem olhos
Observa sem ver
Algo ali mais
À frente
Em pé, curvo
No chão, os seus olhos
Mendigo, talvez
Quem não vê não existe
O chão lhe existe
Ramo nas mãos
Poema na terra
Anchieta na terra de Nóbrega


II

Mendigo
Roupa puída
Calça marrom
Mangas, barba, tudo o mais às cinzas
Eu não existo
O chão é pequeno
Expande-se
Anda com ele
Ramo nas mãos
De lá nada vejo
O louco
A terra
A brincar
Com terra
Louco não enxerga
O homem e o cão
Andar e sorrir
A terra parada
Andar e sorrir
O ramo nas mãos
Os olhos no chão


III

Louco
Mendigo
Existo
Pra mim
Não olha
Pra mim
Os olhos ao longe
O peito a bater
Não olha
Não vê
Estranho
Pra mim
Existe
Pra ele
Eu morto
Pra ele
Não sei
Pra mim
Não serei
Pra ele
Louco, mendigo, meu tio
Preciso saber...


IV

Que fazes?
Formigas
A trilha
As folhas
As costas
Formigas?
As folhas
A trilha
As costas
A trilha?
Formigas
As costas
Que fazes
Das costas
O peso
Da vida
O homem
Do peso
Formiga
Com todas
Sem peso
O ramo
As mãos
Esfolheiam
O chão
Sem peso
Eu vejo
E procuro
Que fazes?
Pedreiro
A vida
Operária
Formiga
E outras
Na vida
Domingo
Aqui mesmo
Lamento
Então
Minha vida
Formiga
Comigo
Sem peso
Formiga
Sem folha
Domingo
Sem viço


V

Louco
De mim
Rico
Das folhas
E flores
De todos
Que vi
E cegos
Me viram
E surdos
Ouviram
Do tronco
O jorro
O sangue
Miséria
Estanque
Dos anos
Sangrios


VI

Nem trilha...
Nem nada...
Formigas
E folhas
Sem cordas
Nem louco
Sem nada
Contudo
Feliz

* Jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe" e da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog), todos da editora O Artífice. Compõe música clássica com o paulistano Flávio Villar Fernandes.

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