quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A nave dos inocentes



* Por Urda Alice Klueger



A estrada era de barro e de pedra e de pó, mas tudo isso desaparecia numa baixa nuvem de bruma, bem rasinha com o chão, a ponto de a gente se esquecer de pensar se os velhos pneus da Kombi iriam resistir aos pedregulhos pontudos ou não – na Kombi velha, que já deveria estar aposentada se cá não fosse o mais legítimo terceiro mundo (e está cheinho de gente que acha que o Sul é diferente, pitéu de primeiro mundo), um bando de pequenos anjos como que agitavam suas tênues asas em forma de sorrisos, e ao olhar para eles, quem é que ainda ia pensar em coisas como pneus e pedregulhos?

Ela viajava adiante do carro aonde eu estava, a Nave dos Inocentes, e apesar de ser mais de três horas da madrugada e da estrada inóspita, cada pequeno anjo daqueles sorria e abanava para nós, e a Kombi tinha as luzes internas acesas, decerto para que nenhum anjinho chegasse a sentir medo, e eles eram tantos, mas tantos, que não sei como cabiam todos ali, meninos e meninas de 3, de 4, de 6 anos, talvez, anjinhos com carinhas caboclas, com carinhas italianas, com carinhas alemãs, verdadeiros anjinhos brasileiros flutuando na névoa dentro daquela Nave que os levava em direção do Futuro, e sua alegria e farra eram coisas impressionantes! No carro onde eu viajava alguém lembrou que se tratavam de anjinhos que raras vezes andavam de carro, que decerto dali vinha sua alegria – e nós abanávamos e eles nos abanavam e riam, e aquela Nave dos Inocentes era como que uma coisa irreal a flutuar na noite, como se fosse um sonho lindo que alguém estivesse tendo, e na verdade, era um Sonho.

Quando eu contar qual era o Sonho, diversos  leitores não vão mais querer ler o resto da crônica, mas, vá lá: eu seguia a Nave dos Inocentes, e nos dirigíamos todos, num comboio que só aumentava, em direção de uma das fazendas de terras arrasadas (há fotos para comprovar o arrasamento das terras) que fazia parte do maior latifúndio do meu Estado, para ocupá-lo. E, diante de nós, como numa irrealidade, a Nave dos Inocentes navegava em direção ao Sonho e ao Futuro.

Andei quebrando um braço e ele ainda não está bem bom; assim, sabia que apesar de estar fazendo parte de uma equipe de apoio, pouco poderia ajudar a carregar e fazer outras coisas para aquelas 500 famílias que seguiam para a ocupação. Então pensei nos anjinhos que abanavam na velha Kombi – e se, na hora em que a Kombi parasse, seus pais não estivessem a postos? Quatro horas da manhã é um horário muito tardio para meninos e meninas tão pequenos estarem naquela farra toda – havia que se pensar no que aconteceria se algum sobrasse na Nave. E já que estava sem muita força física, pensei em usar a força do coração, e ficar de guarda para quando a Nave dos Inocentes parasse, amparar junto ao peito algum anjinho que começasse a chorar. E foi o que fiz.

Assim que chegamos à área que estava sendo ocupada, tratei de sair do carro onde estava e ir ver o que acontecia na Kombi. Como eu, um magote de adultos seguiu para a mesma porta, e todos eram casais, e muitos tinham bebezinhos ao colo, e quase todos eram feios, mal-vestidos, judiados pela vida, envelhecidos prematuramente, sem nada de seu além daquelas crianças que começaram a sair da Nave. E então eles gritavam coisas assim:
- Segura na mão do Luizinho, e tu na mão do Antonio, não se soltem!

E cada casal arrebanhava alguns anjinhos, às vezes três, às vezes quatro, e os colocavam numa enfiada de mãos dadas, preciosos colares de crianças que eram as suas jóias mais preciosas, as únicas jóias das suas vidas sofridas. Em coisa de um instante a Nave dos Inocentes estava vazia – não sobrara nenhum anjinho para eu acalentar junto ao coração. E então eu soube que aquela gente jamais sairia dali a não ser por algum acordo feito por um bom juiz; que não haveria soldado, cachorro ou canhão que enfrentasse gente que tinha colares de tais preciosidades, gente determinada a tudo para garantir as suas jóias.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).






Um comentário: