quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Vovó chegou e partiu na cauda de um cometa


* Por Mara Narciso


O final do ano com festas e presépios me traz inteira Maria do Rosário de Souza Narciso. Vovó foi uma mulher perspicaz que pregava o carinho como arma para a paz. Como seu pai, ensinava através de ditados populares. Tinha pele e olhos claros, cabelos lisos, magra e pequena, mas tinha a força de um leão. Quando completou o centenário do seu nascimento, escrevi sobre ela, mas ainda são tantas coisas para dizer, do meu amor de neta para com a avó.

Era proveniente de uma família com recursos. Meu bisavô Jason Gero de Souza Lima era comerciante e fazendeiro, morava numa boa casa no centro da cidade, e tinha a Fazenda Lagoa da Barra. Vovó apaixonou-se por Petronilho Narciso, que trabalhava como balconista, porém seu pai se opôs ao namoro. Morto o pai, largou o curso de normalista, a dois meses de receber o diploma e se casou em 4 de outubro de 1931.

Dona Du, como era conhecida, assim como eu, tinha asma, que herdamos do seu pai. Esse detalhe a obrigava a ter certos cuidados, como por exemplo, não tomar nada gelado, e só. Sempre teve quem a ajudasse, mas cuidava da casa e do jardim onde cultivava rosas e depois hibiscos, zelava pela saúde dos outros, aplicava injeções, e ensinava normas de higiene. Sua casa foi uma das primeiras a ter telefone e geladeira. Uma vez ela descobriu que Vovô tinha outra família. Era 1942. Ela pegou os cinco filhos que tinha até então e foi à casa de um dos seus irmãos (eram 24) pedir ajuda, queria ficar por lá, mas o irmão a fez retornar.

Quando nasci, Vovó tinha 45 anos, era disposta, fazia doce de goiaba no fogão de lenha, biscoitos e rosca num forno no quintal, e marshmallow que ela falava “mexemel”. Viveu a vida se submetendo a superalimentação para engordar. Comia de 3 em 3 horas, usava Postafen com Rarical, o que fosse de sal levava farinha de mandioca e o que fosse de doce, levava mel, para ficar mais forte (calórico). Tomava um copo de cerveja preta ao natural antes do almoço, como remédio, e se na hora do jantar não conseguisse comer, batia a comida no liquidificador e bebia um copo grande com o nariz tapado. Conseguiu aumentar 12 quilos, indo de 37 para 49 Kg, seu último peso.

As lembranças de Vovó me fazem bem. A superlua que se avizinha faz-me pensar no romantismo daquela mulher sonhadora, que não perdia um filme daquele gênero. Morava perto da Catedral e o Cine Fátima era logo ali. Mais nova, ouvia Vicente Celestino, e quando a casa ficou vazia, com nove dos onze filhos casados (dois morreram ainda crianças) gastava as tardes ouvindo Roberto Carlos e Gigliola Cinquetti, costurando para se distrair, enquanto conversava comigo. Dava conselhos, falava de fatos acontecidos com ela, das atitudes corajosas que já tinha tomado, e me contava segredos.

Paciente, nunca a vi elevar o tom de voz. Ensinava a fazer comidinha, o chamado guisado, mostrando como montar a trempe sobre tijolos num cantinho do quintal. As primas e eu cozinhávamos arroz, farofa de ovo e fazíamos salada de tomate, mas não sabíamos acender o fogo. Era muita fumaça.

Sua pequena chácara chamada Rocinha ficava a poucos km da casa. Íamos a pé, acompanhando-a. Comprou o terreno e plantou cada uma das árvores frutíferas, exceto duas grandes mangueiras na entrada. Chovia muito naquele tempo, assim, a terra era úmida. Enquanto Vovó olhava suas plantas, a gente procurava casas de aranha. A portinha da casa delas é redonda. Identificada, tirávamos a tampa, e víamos o túnel. Então, pescávamos a aranha com um pauzinho com uma isca de terra molhada de cuspe na ponta. Após a retirada cuidadosa dos aracnídeos, colocávamos dois deles frente a frente, e a luta começava.

Vovó tinha uma paciência de avó. Não brigava, mas, atenta, estava sempre vigilante. Guardava frutas do seu quintal para mim, especialmente umbus e pinhas docíssimas. Minha saudade completa 30 anos, pois nasceu no dia 4 de junho de 1910 e morreu no dia 19 de novembro de 1986. Seus 76 anos de vida foram o ciclo exato do Cometa de Halley. Além de chegar e partir junto com o cometa, Vovó teve a benção de morrer como um passarinho. Levantou-se uma hora mais cedo do que a habitual, trocou de roupa, penteou os cabelos, sentou-se na poltrona do quarto, e pendeu a cabeça. Apenas os muito bons partem assim.


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”    

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