quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Tempo de Nascer

* Por Mara Narciso


Recebi um presente pelo correio. Trata-se do livro Tempo de Nascer, do escritor Manoel Hygino dos Santos, montes-clarense membro da Academia Mineira de Letras. Nele o autor comemora os cem anos da Maternidade Hilda Brandão, sendo um pretexto para falar dos primórdios da Medicina mostrada como ritual curativo, baseada em crendice e depois transformada em ciência. Mas o centro é a Obstetrícia. Na capa, uma mulher com seu filho recém-nascido, ao final uma lista dos trabalhadores de lá. O ouvidor faz livros sobre a história das especialidades médicas da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte desde 1995 e a Maternidade é parte importante dela. Concluí três anos de Residência Médica naquele hospital, e minha mãe Milena Narciso foi médica obstetra apaixonada, porém em Montes Claros. Meu interesse se deveu à experiência do autor, a edição de luxo da obra, e ao conteúdo bem alinhavado por quem sabe fazer bem, além da minha ligação com o lugar e o assunto. O valor documental do livro é inquestionável por tratar da história fazendo mais história, mostrando fotos, fatos e documentos. São 120 páginas de satisfação.

A Maternidade Hilda Brandão, cujo nome é uma homenagem a esposa de Bueno Brandão, o Presidente de Minas Gerais (não se usava o termo governador) foi a primeira maternidade da nova capital, e no começo tinha médicos formados em Portugal, ainda que o Brasil já formasse seus profissionais.

Foi mostrado o uso da Roda dos Enjeitados ou Roda dos Expostos, que ficava na porta dos conventos onde se colocava as crianças abandonadas.  Existiam desde 1188 na França, mas não chegaram a Belo Horizonte, sendo registrada, contudo, em Vila Rica de 1730.

As fotos-relíquias despertam curiosidade e são uma atração para todos. Uma delas mostra a primeira criança que nasceu em Belo Horizonte, em 12 de dezembro de 1897, sendo a menina chamada de Minas Horizontina. Na época, as mulheres tinham um recato exagerado, e sumiam quando chegavam visitas, pois poderia atrapalhar o futuro casamento. A consulta médica era feita em frente à família, e o médico não tocava na paciente. As formulações eram individuais e não se acreditava em remédios feitos em série. Acompanhar o parto, uma atividade exclusivamente feminina, ficava a cargo das parteiras e freiras obstetras, e apenas quando surgia uma complicação o médico era chamado. Ter filho no hospital era considerado uma excentricidade. Destaque dado ao trabalho das freiras também nos cursos de formação de auxiliares e à Faculdade de Enfermagem.

A Casa de Caridade e depois Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte foi fundada em 21 de maio de 1899. Fotos de cirurgias de médicos com gorro, avental de mangas curtas, com e sem luvas, sem máscara, com roupas usadas lá fora, sangue em profusão, quando não havia antibiótico nem noções de esterilização são surpreendentes. Como se conduzia um parto, a evolução da cesariana, as primeiras e em que situação acontecia são revelações de peso. A simples lavação de mãos não era óbvia. Foi preciso implantá-la.

Os primeiros aparelhos de fórceps para auxiliar no parto são impressionantes. Os grandes médicos são nomes de Ruas, Praças e Avenidas importantes, assim como denominaram áreas hospitalares e auditórios da Associação Médica. Portanto, a capital não se esqueceu do seu passado. Tudo estava por ser feito, e apenas os fortes seriam capazes de concretizar o que era necessário. Inacreditável a capacidade de mobilização e construção de pessoas como Hugo Werneck, chegado à capital em 1906, pois se mostrou um empreendedor que idealizava, conseguia recursos e concretizava novas entidades assistenciais e hospitalares, além de demonstrar uma generosidade incomum. Na Santa Casa nada cobrava.

Hugo Werneck foi um dos primeiros obstetras a atuar em Minas, fez a primeira cesariana documentada em fotos, construiu a maternidade, o Asilo Afonso Pena (antes Asilo de Inválidos), Hospital São Lucas (sendo pago bancava as outras casas), Sanatório para tuberculose, um hospital para doentes mentais e um orfanato, criando um complexo de seis unidades. As construções iam surgindo por doações, enquanto a Medicina progredia. Destaque ao formalismo e à elegância das pessoas em seu comportar e trajar para o trabalho na saúde.

Tempo de Nascer, de Manoel Hygino é um bom livro, por isso precisa ser visto, lido e comentado. Fazendo isso aprendemos como se faz História. E isso será apenas o começo.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


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