Só a vida não
basta
A vida, em sua forma animal, com as
contradições do dia-a-dia e a luta pura e simples pela sobrevivência, sozinha,
não nos basta. Não, pelo menos, para os que pretendem explorar o máximo das
potencialidades do cérebro e desvendar as fronteiras do irreal. Há muito mais
que podemos fazer que não se limite à mera absorção da educação formal que nos
dão, com o objetivo de nos formar para o exercício de alguma profissão (ou
função), que por sua vez se destina a nos possibilitar a obtenção de recursos
(e os gerar para a "sociedade"), que por seu turno financiem nossa
alimentação, habitação, vestuário e tudo o mais que mantenha nosso corpo
íntegro e saudável. Somos escravos do "sistema".
Não temos nenhuma autonomia. Ou nos
curvamos às expectativas e finalidades alheias que nos são impostas, ou nos
marginalizamos (ou seremos marginalizados). Isto tem lá a sua lógica e
importância. Mas não deve ser tudo para o homem que queira justificar sua
racionalidade. Não podemos aceitar passivamente o papel que nos impõem. Podemos
até exercê-lo, mas com consciência, abrindo espaços para a nossa
individualidade. Compete-nos usar o poderoso instrumento com que a natureza nos
dotou e sermos mais do que meras peças de uma engrenagem que já existia antes
de nascermos e continuará existindo depois que viermos a morrer. Devemos ser,
de fato, "homens".
Daí concordar com Fernando Pessoa,
quando afirma: "A Literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a
vida não basta. Trilhar a obra literária sobre as próprias formas do que não
basta é ser impotente para substituir a vida". É verdade que o homem é
limitado demais para explorar o ambiente físico. Sequer conhece adequadamente
seu domo cósmico: a Terra. Fora dela, esteve algum par de vezes, mas aqui
perto, em seu satélite natural, a Lua e só. No entanto, seu
"domicílio" universal, que lhe parece tão monstruosamente extenso, é
parte ínfima de uma galáxia, provavelmente de porte médio, que é uma em bilhões
de tantas outras. É possível que haja não um único universo, como sempre se
supôs, mas uma infinidade deles. Fisicamente, portanto, a possibilidade de
exploração é limitadíssima, quase nula.
O mesmo não ocorre, no entanto, em
relação àquilo que a imaginação pode explorar. A fantasia também pode ser
ilimitada. Basta que tenhamos disposição e coragem para afrontar essa
imensidão. Criar, criar e criar é o desafio que se impõe ao homem. Não objetos,
posto que, dada sua limitação física, suas possibilidades de criação nesse
campo são mínimas. Mas no plano espiritual se transformam em infinitas. É
apenas com esse exercício criativo, permanente, constante, exaustivo, que o
homem exerce, de fato, sua humanidade.
A preservação da vida física não é
prerrogativa humana. É resquício do instinto de sobrevivência que todo o ser vivente
possui, animal ou vegetal. Trata-se, pois, de ato semiconsciente, se tanto.
Ademais, é um exercício inútil, face à realidade da morte. Devemos, sim, buscar
nossa sobrevivência, mas também em um outro terreno que não o da matéria. É
nosso dever registrar que um dia existimos, pensamos, sentimos, tivemos medo,
raiva, dor e saudade, mas fizemos dessa traumática "matéria-prima" um
universo de sonhos e de fantasia.
Para tanto, não podemos nunca mentir
para nós mesmos. Fernando Pessoa escreveu que "a sinceridade é o grande
obstáculo que o artista tem que vencer. Só uma longa disciplina, uma
aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, podem levar o
espírito a esta culminância". Mas não podemos adiar para o ano seguinte, o
mês seguinte, o dia seguinte, a hora seguinte, o minuto seguinte esse
exercício, essa autodisciplina, essa empreitada. Nosso tempo, em relação àquele
universal, é restritíssimo. A morte não manda recado e nem avisa quando vai
chegar. O presente segundo pode ser o nosso derradeiro.
Daí
a necessidade de utilizarmos cada instante da nossa vida da maneira mais
racional e proveitosa em termos de exercício da nossa humanidade. É possível
que tudo o que fizermos fique perdido, acabe não valendo nada e que sejamos
absolutamente esquecidos passados um, dois, dez, vinte, cinqüenta ou cem anos
após nossa extinção. Esse é um risco que sempre teremos que correr. É o preço
que pagamos pela nossa condição humana, fragílima, efêmera, perecível.
Mas compete-nos tentar. Tentar sem
desânimo ou trégua. Compete-nos sonhar. Sonhar a não mais poder. Compete-nos
agir. Agir até o limite das nossas resistências. Compete-nos criar. Criar
universos de fantasia, embora com a pobre matéria-prima da realidade.
Compete-nos avançar para além da vida, em um terreno que não seja o da morte.
Jorge Luís Borges escreveu a esse propósito: "Fomos feitos para a arte:
fomos feitos para a memória e a poesia: ou fomos feitos, quem sabe, para o
esquecimento. Mal algo sobra; e esse algo é a história ou a poesia, que não são
essencialmente distintas".
Somos desafiados a cada instante a nos
definir: o que somos, o que queremos, para o quê viemos a este mundo louco,
participando dessa sociedade insana? Borges revela que "cada um de nós se
define para sempre, num único instante de sua vida --- instante esse em que
cada qual se encontra para sempre consigo mesmo". Alguns adiam "sine
die" esse encontro, em geral traumático. Outros jamais o promovem. Mas os
que têm a coragem de afrontar seus fantasmas e demônios interiores concluem, invariavelmente:
"apenas a vida não nos basta..."
Boa
leitura!
O
Editor.
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Li e comentei no Facebook.
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