sábado, 5 de novembro de 2016

Preço de um sorriso



Quanto vale um sorriso, daqueles espontâneos que se refletem nos olhos e espelham uma alegria interior genuína? A pergunta pode parecer tola mas, creiam-me, não é. Para a menina norte-americana Chelsey Thomas, que na época tinha sete anos (hoje, caso esteja viva, tem vinte e sete) sorrir custou um sacrifício extra, de dor, decorrente de uma cirurgia de oito horas de duração, em um hospital de Los Angeles, feita no dia 23 de abril de 1996. A garotinha sofria de uma moléstia relativamente rara, a Síndrome de Moebius, que afeta cerca de 100 mil pessoas nos Estados Unidos e que impede que seus portadores expressem na face qualquer emoção. Para mim, essa expressão de alegria, satisfação ou simpatia tem custado um preço impossível de se quantificar em cifras. Mas ainda assim, sorrio.

Não com aquele esgar, aquele ríctus, aquela careta que para muitos representa um sorriso. Isso certamente não. Nem aquele duro, de maldade, como que de apreciação das desgraças alheias, que tanta gente utiliza. Não o falso, o torto (o saudoso jornalista Octávio Ribeiro costumava dizer que todo bandido tem a boca torta quando sorri), que se esboça nos lábios, mas que um bom observador percebe que não é sincero, que não é franco, que não é magnânimo. Esse não reflete nenhuma emoção sadia. Não vem do coração. É apenas cerebral. É um disfarce para maldosas maquinações. Os olhos permanecem duros. O coração mantém-se fechado. Denuncia, para um bom observador, a falsidade que há por trás dele. Não passa de um esgar horrendo, maldoso e até sinistro.

Quando criança, dadas as circunstâncias da minha vida – em decorrência de uma poliomielite extemporânea que me acometeu – poucas vezes pude sorrir. Tanto, que todas as fotos desse período, que restaram em minha casa, me mostram ou sério, ou tenso ou chorando. Com o tempo, porém, comecei a entender que me restaram infinitos motivos de satisfação. O maior deles é o próprio fato de estar vivo, de ter inteligência, de poder, através do meu esforço, concretizar sonhos, desde que não sejam superiores à minha capacidade. Sobraram-me motivos concretos para sorrir. Pessoas generosas ensinaram-me a observar as coisas boas ao meu redor, que na minha revolta contra o acaso, que me marcou fundamente na carne, e na autopiedade que cultivei, em decorrência disso, eu não via.

Benditos altruístas! Iluminados homens e mulheres, anjos com aspectos e vestimentas humanos, seres raros e especiais, que tiveram paciência e disposição para tomar pela mão um menininho assustado e desorientado e o conduziram pelas veredas da beleza! É em respeito a eles, que me ensinaram a sorrir, que sorrio mesmo quando a situação não é para isso. É por eles que não me permito nutrir pessimismos. Sempre que puder, testemunharei minha gratidão pelos que me abriram os olhos para a vida. E se Deus permitir, nas memórias que pretendo escrever antes da minha extinção, vou deixar seus nomes registrados.

Alguns, hoje em dia, superestimam minha capacidade e apontam-me, seguidamente, como exemplo aos indolentes, desanimados e pessimistas. Longe de mim servir de padrão, de paradigma, de referencial para quem quer que seja. Tenho defeitos demais para isso. Cometo erros em demasia para ensinar comportamento aos outros. Incorro em contradições sucessivas para ditar qualquer norma de conduta. Mas se algum mérito eu tiver (é possível que apenas eu não o enxergue, admito), que este seja creditado a essa gente que me amparou em um momento em que pensei que a vida estava acabada, apenas pelo fato da doença me tornar diferente dos demais.

Por tudo isso, reitero o que escrevi na ocasião, inspirado na então menininha norte-americana. “Sorria, pequena Chelsey, do fundo da sua alma, para enfeitar um pouco este mundo tão belo, que os homens desta geração tornaram tão feio, tão tenso, tão injusto e tão violento. Há carrancudos em excesso. Há  infelizes em profusão. Há insensatos de sobra. Há lágrimas demais. Há gemidos em enorme quantidade por toda a parte. Há mantras de ódio, repetidos monotonamente, quase que sem cessar, em nome da justiça, da religião e da liberdade, conceitos em vias de extinção. Sorria, pequena Chelsey, pois o riso das crianças tem o condão de desarmar os espíritos. Ilumine o firmamento do futuro. Encante as veredas do presente. Envergonhe os pessimistas, os derrotistas e os tíbios. Você é a esperança de que a sua geração será melhor do que esta. São crianças como você que têm condições de regenerar o mundo”. E eu não estava certo? O que você acha, paciente leitor?

Boa leitura!


O Editor.

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Um comentário:

  1. Não é verdade que todo bandido tem a boca torta quando sorri. Eu tenho a boca torta mesmo quando não sorrio, e não é devido a falsidade, mas devido ao lábio leporino que, como a você, mas por motivos diversos, me torna diferente dos demais. Está bem, a frase não diz que todo sorriso torto seja de bandido, entendi, mas quis trazer o tema, o meu tema. Você teve de reaprender a andar e eu tive de criar uma cara para mim. Mas está bom. Fui operada com 30 dias de vida e há quem chegue a vida adulta ou até chegue a velhice e à morte, sem nunca poder ter um rosto, uma boca, um sorriso. Vamos sorrir mais?

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