Mestre Norberto
* Por
Rubem Costa
Multidões Mysticas e
Delinquentes, título assim mesmo escrito, sem tirar nem pôr, com o y da
ortografia etimológica. Autor — José Ingenieros. Deparei hoje com o livrinho
que, desde quando já não sei, estava a dormitar empoeirado na estante. A
descoberta falou à emoção, fazendo-me lembrar do velho mestre. Foi dele que
recebi de presente a obra, dádiva espontânea que lhe saiu das mãos tão logo
soube que, ancorado em Le Bom, ensaiava eu estudos sobre a psicologia das
multidões. Ano de 1938. Estava ainda nos bancos da Escola Normal, mas já era
repórter batalhando à noite em jornal diário. Havia assim razão para nos
entendermos, posto que, entre mim e ele existia um ponto de ligação que nos
unia em afetivamente na conversa de todo dia.
O elo vinha de um fato
“sui-generis” visto que, além da natural relação subordinativa de aluno a
professor, éramos também colegas de profissão. Em que pese entanto a esse hífen
de identidade, pelo menos convencionalmente as coisas não se misturavam em um
só compartimento, já que na escola ele era o mestre e eu o discípulo; na rua
entanto surgíamos como companheiros e confrades embora na minha incipiência
continuasse sempre o aprendiz. Confrades, por quê? Porque Norberto de Souza
Pinto, na época o mais antigo jornalista militante da cidade, fora o fundador e
presidente da Associação Campineira de Imprensa, da qual eu me punha talvez
como o mais recente agregado. Naquela amizade espontânea havia ainda uma
contrapartida curiosa.
Quando, ao final das
aulas, acontecia de sairmos da escola no mesmo horário, era quase certo irmos
em bate-papo informal até sua biblioteca, ou mais propriamente dito, a um sem
fim de livros que ele mantinha amontoados numa casa da rua Sacramento de cujo
número já não me recordo, mas localizada — disso não me esqueci — bem em frente
à estátua de Bento Quirino na praça que então se chamava Largo da Matriz Velha.
Foi numa dessas tardes de cavaqueios que, sabendo de minhas pesquisas, me
ofertou o livro que conseguiu milagrosamente encontrar naquela montoeira de volumes,
enriquecendo a dádiva com comentários de guru familiarizado com as agitações da
alma humana. Professor de psicologia o era, porém mais que isso, um
ortofrenista que no espírito alimentava a vocação de santo em busca de educação
especial para a infância desvalida. Todavia, naquele instante em que
dissertávamos sobre multidões místicas, tínhamos o pensamento voltado para a
Europa, onde a um gesto do braço estendido e ao grito de “heil Hitler” a cruz
suástica já sombreava o continente movimentando exércitos delinquentes para
aquela que seria a mais trágica de todas as guerras da história.
E eu aturdido, nos
meus 19 anos, trazia os sonhos escorrendo pela mente e a esperança esparramada
no futuro. É por isso que procurava entender a psicologia das multidões, do
homem se despojando de sua liberdade de agir para responder a uma única voz de
comando, imposição imbecil sem réplica que partindo da boca de um sargento
qualquer: — “Ordinário, marche!” — interpretava a paranoia de um pintor de
paredes guindado pela inconsciência de um povo à condição de condutor, o
“führer”. Paradoxalmente, foi aí, na antevisão cinzenta de uma terra em transe,
que me anteveio a compreensão do ilimitado poder do sonho! Pois não é que,
enquanto a ameaça cósmica se derramava na rosa dos ventos do universo,
paralelamente o velho mestre reunia tempo — e sobre isso me falava — para
pensar profundamente sobre um cenário telúrico que se desenhava deplorável no
recôncavo da nação — o abandono a que estava entregue a educação da criança excepcional.
Refletir sobre a
extensão trágica de um conflito universal era imperativo, disse-me desolado
Norberto, porém deixar de pensar em seres abandonados por deficiências herdadas
e das quais não têm qualquer culpa, era tão grave ou mais, porque, nesse caso,
o desamparo do ser inocente é crime de lesa-humanidade. Era assim, coração
aberto às angústias do ser, que o professor perorava em nossas tertúlias,
escambos que em verdade mais não eram senão barganhas de pesos diferentes, nas
quais eu pouco ou nada tinha a oferecer, mas muito lucrava com os conhecimentos
que do mestre provinham. Recordo-me genuflexo de seus lances visionários, onde
os anseios por um mundo melhor se sobrepunham aos interesses pessoais do homem
que nunca descansou e batalhou sem fim para alcançar o seu propósito.
Foi assim a vida
inteira, um sonho em marcha. Movido pelo ideal de bem servir, a partir da
primeira escola especializada que fundou, tornou-se autoridade de renome
universal. Superavam fronteiras os trabalhos de quem aprendeu sozinho a
contemplar o sentido humano da vida. Entretanto, nunca se aproveitou do
prestígio para amealhar fortuna. Aposentou-se pobre como professor na Escola
“Carlos Gomes”, onde distribuiu por décadas o ouro de seu ensino para riqueza
de gerações seguidas de normalistas que passaram pelo instituto guardando na
mente a fala do mestre e no coração o catecismo de um santo.
Todavia, não foram
apenas os alunos que se beneficiaram com a prédica de seu ideal, porque
Campinas acima de tudo foi a herdeira presuntiva de sua ambição franciscana,
dos anseios que à custa de tanta pertinácia vieram um dia a se concretizar em
pedra e cal no Instituto de Pedagogia Terapêutica que hoje lhe guarda o nome,
cumprindo o desiderato de acender uma luz para crianças e adolescentes
portadores de deficiência mental. Uma obra feita de amor que traduz em ação o
mais desprendido dos anseios humanos — dar de si antes de pensar em si. De
Norberto de Souza Pinto, como marca de sua crença ao longo de uma grande vida,
só se pode falar com as palavras de Ruy definindo a fé: — um oceano que
continua a ser oceano enquanto as ondas perpetuamente correm sobre as ondas.
*
Professor, escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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