quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Rua da Glória sumiu!

* Por Urda Alice Klueger


- Na noite de hoje tive que ir resolver uma coisa na Rua da Glória, a rua da Escola da minha infância, e depois me sobrou um tempinho para uma caminhada. Resolvi que podia caminhar por lá mesmo, e estacionei no pátio de simpática pizzaria, que tinha um dono também simpático, que me autorizou a deixar o carro ali. Vale lembrar que a pizzaria ficava quase que defronte à minha escola primária, e embora o dono da pizzaria tivesse me sugerido a caminhada em direção ao centro, onde encontraria largas calçadas, disse-lhe que tomaria o rumo oposto, que iria à procura do passado, da minha infância, pois estudara ali e conhecera tantas crianças da Rua da Glória, naquele tempo! E então fui! Céus, a Rua da Glória sumiu! Eu lembrava de estreita serpente de poeira, ladeada de casas humildes, e sabia muitas coisas sobre ela, como o pé de goiaba que havia atrás da casa da nossa prima Coca, como as orquídeas boas de roubar na cerca da casa tal ou tal, onde moravam meus amiguinhos – a Rua da Glória era uma rua de grande intimidade, para mim! Nela ficava a minha escola, a Igreja Nossa Senhora da Glória, a casa paroquial, o salão paroquial, onde funcionava um grêmio que ajudei a fundar, e que tinha o lindo nome de “Grêmio Guias das Montanhas”, e nela viviam as lembranças da escolinha da D. Júlia Strawolska, anterior à Escola São José, que fora a minha – cadê tudo?

- Minha escola mudou completamente – tem diversos andares, hoje, e já não se chama São José, embora eu tenha tido a impressão que a imagem de São José continua lá no alto do que foi, um dia, o segundo andar, acima de uma varanda onde éramos vistos pelo Governador do Estado, quando aparecia, e pelas Madres da Congregação, quando se abalavam de Minas Gerais até o Sul. E por todos os lados há cercas e muros, muitas cercas e muitos muros, e muito asfalto e muito concreto, e o muro da minha escola, hoje, é tão grande que já não pude descobrir se ainda vive uma árvore cuja muda nossa sala plantou lá dentro, lá no começo dos anos 60, no Dia da Árvore, junto com a Irmã Maria Rosária!

- A Igreja quase parece a mesma, não tivesse agora lá no alto da torre relógios que parece que não funcionam. Mas está toda cercada de grades, e das antigas construções só restou a Casa Paroquial, e olhei bem atentamente que ainda está lá a sala onde um dia, quando eu tinha 15 anos, o Padre Sílvio Tron tirou da minha cabeça o sonho de vir a ser uma arqueóloga. Enveredei Rua da Glória adiante, então, e foi como entrar num mundo desconhecido. Não consegui reconhecer uma casinha que fosse, uma pessoa que fosse! A serpente sinuosa tem muito menos curvas, depois do asfalto, e como há asfalto, concreto e ferro por todos os lados! A minha Rua da Glória já não existe. Nem existem mais os morros cobertos de mato que estavam por detrás das casas: assim de noite, na ignorância da mudança, as muitíssimas janelas iluminadas morros acima me davam à impressão que olhava para os cerros de Caracas, na Venezuela, embora tivesse certeza que, de dia, o que tinham sido um dia os morros repletos de fadas e duendes, e até uma gruta de Nossa Senhora, seriam diferentes dos cerros lá do quase Caribe! E a lua quase cheia, que deveria estar reinando soberana por cima das matas que tinham sumido, agora parecia ser apenas mais uma janela iluminada naquela sensação de se estar em Caracas! Pergunto-me: se até a lua sumiu da Rua da Glória, como pode ela ter sobrevivido? Sei que andei e andei, fui longe e depois voltei, e nenhuma casa, nenhuma pessoa que fosse consegui reconhecer – sequer o lugar onde um dia fora à casa da nossa prima Coca, a mãe do Ernani, da Minervina e de tantos mais; a avó do biólogo Elias e de muitíssimos mais! Se sequer o lugar da casa da Coca consegui reconhecer, o que dizer do resto? Sabia, família a família, quem morava em cada casa, e agora tudo se foi. Vi apenas uma casa comercial que tinha “Stoll” por nome – fiquei a pensar que talvez se tratasse da família de uma menina chamada Maria Stoll, graciosa sílfide que era liderança no nosso colégio – mas será que a gente da Maria Sotll ainda está por ali? A Rua da Glória da minha infância vive hoje, apenas, dentro do meu coração. Quando voltei da caminhada e disse ao homem da pizzaria que a Rua da Glória sumira, ele ficou feliz:

- Progrediu um bocado, não foi? Perguntei se ele era dali. - Não, cheguei à Garcia na década de setenta.

Mesmo em 70, a Rua da Glória era outra. As mudanças devem ter acontecido tão imperceptivelmente que quem estava ali não notou.

Para mim, no entanto, foi como um soco no peito.

Blumenau, 31 de janeiro de 2006.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Um comentário:

  1. Ainda bem que a gente tem coração para guardar a Rua das Glória, e também memória, pois sem ela não há saudade.

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