quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A morte do ribeirão


* Por Urda Alice Klueger


Tudo era úmido, fresco e verde, lá naqueles dias da minha primeira infância. E no meio daquele grande frescor verde, ele corria como uma dádiva de cristal, serpeando pelo fundo do Vale que ele próprio escavara ao longo de tempos imemoriais, e onde agora ficava a rua, as poucas casas, os muitos pastos. Os adultos já deveriam saber de alguma poluição, pois minha mãe sempre dizia para não beber daquela água, o que fazia, claro, que a cada vez que eu me visse sozinha, fosse correndo beber exatamente daquela água que era tão boa, tão fresca, tão cristalina!

Havia peixinhos nadando para cima e para baixo por todo ele, pequenas piavas cujas barrigas prateadas brilhavam quando o sol sobre elas incidia, e grandes cascudos que viviam em tocas, e que meu pai pegava com uma fisga nas suas tardes de folga, além de outros peixes que o nosso vizinho Osnir acabava pescando, como uma assustadora “ingüila”, que metia medo em todos nós, e que hoje sei que o nome certo era enguia.

Aquela coisa de cristal que navegava por meio de pastos atraía muitos insetos, também. E, nas tardes de Primavera, interessantíssimos bichinhos que a gente chamava de “helicópteros”, e que hoje eu penso que se tratava de louva-a-deus, e grilos, e outros grandes insetos de asas transparentes enchiam o ar por ali, e muitos deles, decerto, acabaram pousando no rumorejo brilhante daquela água encantada, e viraram comida dos muitos peixes que havia. E quando era dia de festa, como dia de aniversário e Primeira Comunhão, o pai da gente comprava gasosa e cerveja para o almoço, e naquele tempo de antes da chegada da geladeira, as garrafas eram colocadas dentro do ribeirão de manhã, para que seus conteúdos ficassem bem fresquinhos para o almoço. E a mãe da gente pegava baldes d’água dali para encher o cocho de lavar roupa, e a tia Fanny, mais adiante, fazia a mesma coisa.

E quando chovia muito, ele simplesmente transbordava. Qual era o problema dele transbordar? Havia pastos e pastos por todos os lados onde ele podia se espraiar, e se havia uma coisa boa na vida de uma criança, era andar por dentro dos pastos alagados, molhando-se o mais que podia, mesmo sabendo que levaria uma bronca ao chegar em casa. A gente não corria o risco de cair na corrente principal, lá onde era perigosa quando ele estava cheio, porque ela era toda demarcada por touças de inhame que se aproveitavam da umidade perene para vicejarem com o maior garbo. E passada a chuva o ele se encolhia, voltava ao seu leito, e a vida voltava a correr normalmente.

Estou falando do Ribeirão da Rua Antonio Zendron, em Blumenau. Ele era assim como estava contando, e foi assustador o que aconteceu com ele. Nestas ultimas quatro décadas, gente e mais gente foi morar onde antes eram os pastos; condomínios surgiram e casas pipocaram, e ele deixou de ter para onde transbordar nos dias de chuva, e também perdeu as suas curvas, os seus inhames, os seus peixes. Chegou um momento em que ninguém mais queria saber dele, que se tornou um ribeirão odiado. E então retificaram-no de fora a fora, e prenderam-no num grande túnel de concreto. Nesta semana, estive lá espiando o que aconteceu. Fui ver sua desembocadura, que é o que ainda pode ser visto, e lá no fim do túnel de concreto escuro, saía uma água sofrida, humilhada, cheia de garrafas, pedaços de plástico e outros lixos. Escuras algas que antes não existiam quase engolem o pouco de água que sobrou – decerto nasceram ali para devorar alguma coisa da grande poluição que corre por aquele canal. Até uma rua passa por cima do canal escuro – é como se o ribeirão nunca tivesse existido.

Cadê as libélulas, os cascudos, as piavas com as barrigas prateadas brilhando ao sol, e a água limpa para as mães da gente lavarem roupa? Não estão mais lá, com certeza. Mas eu me lembro como era, ah! Como me lembro!

Blumenau, 10 de Outubro de 2003

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



2 comentários:

  1. Doe ler, quanto mais lembrar desse doce sonho da infância. Aqui no norte de Minas a gente também tinha esses rios pequenos que chamávamos de riachos, e quando nos referíamos ao caminho deles, dizíamos que "serpenteavam", e seus peixinhos eram "piabas". Nosso Brasil é grande, Urda, de muitas linguagens, e todas têm seu lugar, mas a nossa chamada "civilização" está a cada dia mais faminta em sua crueldade e destruição. Já não cabem mais os grandes rios Doce ou São Francisco, sumindo, e os pequenos já se foram. Só nos resta chorar e olhar as fotos, caso existem ou recorrer às imagens gravadas na memória.

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