quarta-feira, 9 de abril de 2014

Olhar generoso

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Tinha uma cisma com as tais pintinhas no rosto, os cabelos brancos em profusão, os dentes escurecidos pelo bendito café, seu consolo nos dias de solidão. Não pressentiu a tempestade que se anunciava, um telefonema nas primeiras horas da manhã lhe trouxe notícias amargas: a mãe se fora, assim de repente, como quem já estivesse de saco cheio dessa vida e resolvesse partir.

Seu cãozinho, o único que lhe aturava, fugiu portão afora, nunca mais voltou. Uma notificação da imobiliária, com ameaça de despejo, remoía-lhe o estômago.

Encaixotou suas tralhas e subiu o morro. O barraco pintou de branco. As mudas de margaridas plantou em todo o quintal. Matou galinha, fez a farofa, reuniu os vizinhos para a ceia.

O sol anuncia um dia colorido, as margaridas emolduram o barraco de Zulmira, seu sorriso, ainda amarelo, é prenúncio de alegria. As pintinhas no rosto aos poucos cederam vez a um olhar mais generoso, pois a vida lhe deu muito mais.

 * Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário


Um comentário:

  1. Ai que tristeza: velhice órfã, pobre e feia. E sem cachorro. Nem sei como deveria estar esse olhar. Ainda assim,você viu poesia nesse fim de existência, Núbia. Suas palavras adoçaram a dura realidade.

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