sábado, 26 de abril de 2014

Sujeito Zero (4)

* Por Sergio Vilas Boas



COM AGILIDADE AFOITA e um taxista embarcado na aflição, Alma chegou o mais rápido que pôde à Tremont Street. No hotel, embutiu os pertences de qualquer jeito. Cosméticos se espalharam, a mala não fechou no primeiro chute. Ela parece ter uma energia super-resoluta – algo meio masculino, me parece.

Conseguiu conectar-se ao seu mundo com o velho e bom telefone fixo. Os números mais importantes - da mãe e das duas irmãs - não responderam desde as primeiras tentativas. Enfim, localizou um dos vizinhos de seu pai, João Vital, que, na melhor das intenções, acabou espetando uma agulha sob as unhas de Alma.

Então houve um internação hospitalar que durou cinco dias? Por que não me avisaram? Para não me preocupar, como assim? João Vital garante que tentaram e não conseguiram me localizar. “A confusão foi grande”, ele me disse ao telefone.

Vicente, o outro vizinho, amigo de Seu Edmundo, foi quem testemunhou o primeiro comunicado médico. A revelação da radiografia não podia ter sido mais cruel. Havia metástases nos dois pulmões, derrames infecciosos nas vias respiratórias. Para a UTI, imediatamente, onde tentariam drenar os derrames.

Além da nevasca, da angústia e tudo aquilo, Alma precisou governar naquela noite uma série de percepções equivocadas, dela e dos outros. De todos em relação a todos, dela em relação a si mesma. Aqui, no Brasil, atrapalharam-se com o processo, e mais adiante compreendi que a causa foram os afetos desencontrados e as tantas pessoas omissas, incluindo, claro, o próprio Seu Edmundo.

Alma ligou para todas as companhias aéreas e ferroviárias. Os vôos shuttle Boston-Newark daquela noite estavam ou lotados ou cancelados, e as conexões com trens da Amtrak e suburbanos tampouco coincidiam com a urgência do caso.

Garantiu o último assento em um MD-11 previsto para decolar à meia-noite de Newark, Nova Jersey, com destino ao Rio de Janeiro. Mas tudo estava condicionado à sorte e às quatro horas imprevisíveis de carro (supondo a velocidade de 80 quilômetros por hora - astronômica, dadas as condições atmosféricas) até o Aeroporto Internacional de Newark.

Entre tropeços e lágrimas, a lucidez dela vacilou, sentimentos vertiginosos voltaram a aflorar. No pescoço havia uma espécie de forca feita de cordas vocais entrelaçadas. Acabou tomando uma atitude arriscada, mas que, na manhã seguinte, se revelaria um golpe de sorte tremendo: Alma alugou um carro para ir de Boston a Newark e conseguir embarcar no MD-11 da Continental Airlines à meia-noite.

Enquanto isso, a natureza insistia em precipitar cristais de gelo suspensos, em brecar as ilusões de movimento dela. A duração da ansiada viagem de encontro com a lápide florida de seu pai, dadas essas e outras adversidades, era uma incógnita. Mas ela, contra todas as advertências, acertou as contas na recepção e foi apanhar o compacto Hyundai Accent numa loja da Hertz Rent-A-Car...

***

Duas semanas antes, Alma havia encontrado o pai do lado de fora do portão da Fazenda Futura, um centro de recuperação de dependentes químicos. Foi chamada - e ele teve sorte de a encontrarem - porque Seu Edmundo estava cada vez mais queixoso de uma falta de ar implacável, que o vinha impedindo de dormir, comer e até de raciocinar. Como havia parado de fumar, acreditava-se em “efeito rebote”.

Seu Edmundo parara de fumar por necessidade, não por convicção. Eram as regras. Para ser aceito na Futura, nem uma gota de álcool (eis a razão da internação dele), nenhum cigarro a partir do momento em que ultrapassasse o portão. As freiras eram rígidas também quanto às visitas. Os pacientes só podiam se comunicar com familiares e amigos por carta. Uma dura terapêutica disciplinar, mas pela qual não se pagava um centavo.

Alma é a única das três filhas a se interessar por Seu Edmundo. As outras nunca se apegaram a ele nem fizeram esforço porque o consideravam apagado, sem iniciativa e ainda por cima tabagista e alcoólatra, dois fatores que poderiam livrá-lo da condição de “vítima do sistema”.

Houve mesmo um período em que até os colegas de botequim batiam a carteira dele. Mas não pretendo, agora ou adiante, insistir na tecla de suas privações. Seria uma hostilidade com aqueles que pensam estar se dando bem na vida. Ou será que alguém neste mundo está imune à miserabilidade?

Alma assumira a responsabilidade pelo pai espontaneamente. Ao que parece, uma atitude típica de mulher que sempre abominou a exclusão e experimentou nos últimos dez anos mundos muito diferentes entre si. Acredito piamente que ela era fascinada por Seu Edmundo. Mas nutriu, como eu próprio, um pouco de pena dele.

Então, ela o viu se aproximar do portão da Futura barbeado e mais magro. Abraçaram-se, desajeitados. Mesmo para ela, que procurava demonstrar os mais nobres sentimentos e afetos, relacionar-se com o pai era um tanto complicado. Primeiro que ele tinha um histórico de não colaborar para o encaminhamento dos progressos. Segundo que ele não sabia se comportar conforme o ambiente e o momento.
- Como está o tratamento, pai?
- Exigem trabalho e oração aqui.

O Fiat Uno Mille de Alma levantava poeira rumo ao posto de saúde mais próximo, em Catas Altas, cidadezinha perdida no mundo a cerca de 45 minutos da Fazenda Futura. Alma tentou ocupar os hiatos com comentários e incentivos do tipo:
- Agüenta firme, pai, não pode abandonar o tratamento a essa altura.
Ele já havia feito isso várias vezes, daí a baixa credibilidade.
- Quero voltar pra casa, Alma. Me leva pra casa.
Silêncio. E ela, consigo mesma: Fraco! Manhoso!. Depois de um pedido desses, falar sobre o que mais? Sobre a saúde? A tosse, por exemplo?
- Faz quanto tempo que está tossindo assim?
- Uns dois meses.
E Alma de novo consigo: Coitado, está se ferrando. Precisa de ajuda.

Por causa do feriado, véspera do terceiro milênio, havia duas pessoas de plantão no posto de saúde, embora ausentes do local. A médica estagiária tinha ido almoçar na casa do namorado, a mais ou menos meia-hora de poeira dali, segundo a secretária do posto, encontrada por acaso. Alma bateu pé, telefonou para a médica e conseguiu convencê-la a comparecer.

Prosaica, a jovem auscultou Seu Edmundo, mediu pressão arterial e examinou as amídalas.
- O senhor está com a respiração embargada. Típico de quem pára de fumar repentinamente.

A jovem estagiária, sobre quem pouco se sabe, não pediu nenhum exame minucioso. Nem mesmo um raio x de pulmão. Naquela aldeia fantasma, em plena tarde de 31 de dezembro, o que adiantaria um pedido de raio-x? Mas era obrigação dela. O pedido pesaria na consciência de Alma, que certamente teria dado um jeito de levar seu pai aonde quer que houvesse um aparelho de raio-x.
- O senhor está com bronquite tabágica.

Foi esse o diagnóstico da “médica afetuosa”, que receitou aqueles expectorantes que aparecem em outdoors. Se fosse em dia útil, numa clínica de cidade grande, com uma especialista mais experimentada, a vida de Seu Edmundo podia ao menos ter sido prolongada, Alma pensou. Ele não teria morrido duas semanas depois.

Ele tinha câncer em estágio avançado, Alma. Você não entende?

Na hora de se despedir do pai na porta de entrada da Fazenda Futura, Alma estava dividida e preocupada. Precisava tirá-lo dali, mas achei que não devia. Queria mantê-lo ali, mas achei que era preciso levá-lo para casa. Eu tinha de levá-lo e ao mesmo tempo mantê-lo ali. O nó da situação me apavorou. Meu Deus: é só uma bronquite tabágica ou algo mais grave? É sofrimento ou mais um artifício pra gente se apiedar dele e tudo ficar como está?

Ela empurrou a decisão para Seu Edmundo, que, evidentemente, projetou-se para trás, agindo para que tudo ficasse como sempre: igual. Mas antes de preferir entrar de novo na Futura, ele perguntou, orgulhoso de si:
- Tá vendo aquele roseiral ali?
- Tô.
- Fui eu que plantei.
- Lindo, pai.
- Fiz tudo sozinho.
- Que legal!
- As freiras gostaram.

***

No dia seguinte (1º de janeiro de 2001) Seu Edmundo abandonou por conta própria o tratamento que completava apenas dez meses. Sacolejando em ônibus caquético, ele retornou à alugada casa de fundos da Rua C, bairro Jardim Nova York, Belo Horizonte, seu endereço postal desde julho de 1978, quando se separou de Inês e das filhas Alma, Ava e Clara.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
  

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