A justiça do professor Cambeba
* Por
Marco Albertim
Há um débil limite
entre o imaginário e o palpável, em quem opta pelo materialismo, durante um bom
tempo antes que a nova escolha não se assenta em conjeturas científicas. O
imaginário, inda que carregue o risco de retrocesso a crenças difusas, é
tentador porque induz à prostração do raciocínio.
A crença na convulsão
permanente da matéria requer tempo, tempo e observação. O professor Adauto
Cambeba, há algum tempo dera as costas às homilias do padre Hercílio, mesmo
mantendo uma polêmica amistosa entre o viço de seu credo ainda vaidoso, e a
metafísica do religioso. A recusa, no entanto, ao reconhecimento do regime
militar como legítimo, juntava-os como a irmãos.
- Aos militares, a
cremação dos infernos!
- Vai com Deus –
respondera padre Hercílio da última vez em que se atiçaram.
Dali a uma semana, meio
que ungido pelo bom agouro do padre, Adauto Cambeba juntou-se a meia dúzia de
amigos, pondo-se a conversar na praça deserta àquela altura da noite, ou começo
da madrugada. Convém precisar que a praça alongava-se em forma de triângulo,
espremida por casarões de um lado e de outro, habitados aqui e ali por
oligarcas de engenhos de açúcar. O grupo acomodara-se em dois bancos, um de
frente para o outro, sem recosto para as costas. Na extremidade aguda do triângulo.
Certo de que padre
Hercílio daria razão a sua prédica, o professor não subiu no banco a modo de um
meetingueiro republicano, mas levantou-se, ficou em pé na alameda de terra crua
da praça.
- Os militares serão
julgados por seus crimes. E o mel que escorre da cana-de-açúcar de Goiana, não
será mais tingido pelo sangue dos trabalhadores...
No quarteirão da rua do
Amparo, um único feitor de engenho deixou-se acordar pelo zumbido das predições
de ameaça do professor Adauto Cambeba. Múcio Rabelo ergueu-se da cama de
caviúna, cuja entalhadura barroca afiançava o legado colonial de que se
beneficiara. A esposa, tão madura quanto ele e, ainda com relevos sem indícios
de perda do frescor, seguiu no sono sem pecados das sinhazinhas atentas às
homilias de padre Hercílio.
Múcio Rabelo
reconhecera o diapasão anasalado do odiado professor Cambeba. Telefonou para a
Cadeia Pública, queixando-se de agitação imprópria no nicho secular da Praça da
Bandeira; telefonou, atendeu-o o sargento plantonista, àquela altura também
agastado por ter sido interrompido em seu sono de soldado no justo descanso.
A viatura policial, uma
pickup, estacionou ao lado da praça. O feitor se pusera na janela de casa, com
os cotovelos debruçados, mostrando as listras do pijama azul e branco.
- É aquele de focinho
mole. Esse mesmo, o Cambeba – gritou ele para o professor.
Adauto Cambeba foi
posto na carroceria coberta da pickup, junto a dois policiais fardados com a
mesma cor do veículo. Aos outros, ouvintes atentos do professor, o sargento ordenou-lhes
a dispersão.
O professor Adauto
Cambeba foi solto na tarde do dia seguinte, a rogo do padre Hercílio. Uma
semana depois, o feitor Múcio Rabelo morreu na cama de caviúna, apoplético,
contrariado com as ameaças em surdina de Cambeba. Padre Hercílio rezou a missa
de sétimo dia, a contragosto do professor. Cambeba jurou, e disse aos amigos
que o viram ser empurrado para a pickup, pichar em tinta preta na lápide do
feitor – Aqui jaz um fascista.
Cambeba seguiu pela rua
das Quintas sem que ninguém o enxergasse na madrugada fumaçada de agosto. Abriu
um dos lados do portão do cemitério; o ferro, ainda que velho, não rangeu. Fora
ao enterro do desafeto, espreitara com pesar o choro da viúva, noutros tempos
sua namorada. O vento soprou frio entre as palmeiras e acácias, nas alamedas
salpicadas de pedrinhas. É atrás da capela – pensou. A lua quis se insinuar, só
espalhou um arremedo de claridade, tão bacento que se confundiu com o rosto
terroso de Cambeba. Súbito, o vento soltou um assovio grosso entre as acácias
cujos galhos se chocando, arranham-se. Cambeba voltou-se, mesmo depois de
distinguir na lápide do feitor, espectros de outros feitores, já comidos pelos
vermes. Múcio Rabelo ainda tem carne nos ossos – ajuizou. A acusação na lápide,
não será tão tardia. A luz da lua, insistindo contra a bruma fumacenta, deixou
entrever o que mais zumbia nos ouvidos de Cambeba, o sussurro ruidoso dos
galhos das acácias, os mais grossos. Ele olhou na mesma direção da suposta
conversa. Não viu ninguém. Mas entre o ir e vir da luz indecisa da lua, pensou
distinguir um rosto com um bigode peludo nas cascas dos galhos das acácias.
Quanto mais a luz incidia nos troncos, mais desprendia-se um som difuso, inda
que audível, de uma voz suplicando para a lápide não ser conspurcada – Nãaao.
Não pode ser, eu sou um materialista – rematou Cambeba. Tirou do bolso de trás
da calça o spray de tinta. Em vez da sentença na lápide, jorrou a tinta entre
um tronco e outro da acácia, onde supunha ter visto o rosto indeciso do feitor.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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