sábado, 17 de março de 2012



Tornando o incrível crível

Há escritores que conseguem a façanha de tornar as histórias mais inverossímeis que se possam imaginar em perfeitamente críveis. Como fazem isso? Com seu talento, claro. Com um poder de convencimento excepcional. Sobretudo, com a criação de personagens tão vivos e tão autênticos que chegam a parecer pessoas que conhecemos e com as quais convivemos no dia a dia. Com descrições impecáveis de cenários e de fatos verídicos da época em que situam seus enredos. É habilidade rara, daí chamarem tanta atenção.

É certo que existe a contrapartida. Ou seja, há escritores que conseguem estragar as melhores histórias, cujos desfechos seriam naturais e lógicos, caso fossem claros e diretos, mas que, dada sua imperícia e falta de capricho e atenção , nos soam como incríveis, como ridículas e inverossímeis. Como detesto criticar colegas do meu métier, ficarei com os primeiros. Ou seja, com os que se destacam pela aptidão. E neste caso situo e enfatizo um dos autores de língua portuguesa que mais aprecio: Eça de Queiroz.

Acabo de reler seu romance “Os Maias”, que já havia me impressionado sobremaneira na primeira leitura, feita há cerca de quatro décadas, e atentei a detalhes que naquela ocasião não havia atentado. Raciocinem comigo. Vocês achariam possível que dois irmãos, separados praticamente no nascimento de um deles, com diferença de idades de no máximo dois anos, criados por famílias diferentes, vivendo em países diversos, cerca de vinte anos depois da separação se encontrassem e se apaixonassem um pelo outro, sem sequer desconfiarem (claro) do parentesco? Coincidências como esta podem ocorrer, não nego, mas qual a sua probabilidade? Creio que uma em um bilhão, se não mais.

Eu não me arriscaria a explorar um enredo desse tipo. Mas Eça de Queiroz se arriscou. E compôs um romance de tamanha grandeza, que é considerado, sem favor algum, um dos grandes clássicos da literatura mundial. No desenrolar da história, nem de longe desconfiamos que Carlos Eduardo Maia e Maria Eduarda são irmãos. Essa revelação bombástica, que se feita (ou sequer sugerida) nos primeiros episódios, soaria ridícula e inverossímil, ocorre, apenas, e de chofre, de forma direta e brutal, nos capítulos finais. E é tão chocante, e horrível, que causa a morte, por desgosto, do patriarca dos Maias, o avô de Carlos Eduardo (que o criou com carinho e esmero) e, claro, da bela e um tanto misteriosa Maria Eduarda.

O mérito maior de Eça está na criação de personagens tão verossímeis e marcantes, que ao longo da leitura e ao final dela nos tornamos “íntimos” deles. Apreciamos os de bom caráter, detestamos os pilantras e torcemos pelo sucesso do romance de Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Claro, antes de sermos cientificados de que são irmãos e de que seu relacionamento carnal é o clássico caso do social e moralmente condenável incesto.

Divertimo-nos, por exemplo, com a irreverência e uma certa irresponsabilidade de João Ega (supõe-se que se trate do próprio Eça de Queiroz, posto que com mudanças, aqui e ali, de idéias e comportamentos). Simpatizamos com o velho poeta Alencar, amigo de juventude do pai de Carlos Eduardo, Pedro, que se suicida depois que a mulher foge com um aventureiro qualquer, levando a filha e deixando-lhe o filho ainda bebê pára ser criado. Claro que a figura central, maior, pela qual nutrimos até indisfarçável reverência e filial carinho é o patriarca Afonso da Maia.

Mas os personagens que desfilam diante dos nossos olhos são muitos, cada qual com sua importância no enredo. Não há nenhum supérfluo. Como os dois Vilaças, primeiro o pai e, depois que este morre, o filho, ambos tutores dos bens e negócios do clã dos Maias. Como o inglês Brown, preceptor do garoto Carlos Eduardo, que o educa nos princípios rígidos da mente sã em um corpo são. Como o Eusebiozinho, figura patética, meio que adoentada, que ora nos desperta piedade, ora nos deixa irados com seu maucaratismo, notadamente oportunismo. Como o Craft, freqüentador do círculo de amigos do nosso herói, quer em Lisboa, no casarão batizado de Ramalhete, quer na quinta de Santa Olávia, na região do Porto. Como o diplomata finlandês Steibroken com suas canções. Como o Marquês Cruges. E como, principalmente, o ridículo e adiposo Damaso Salcede, que tem papel preponderante no enredo, como o clássico e traiçoeiro vilão.

As mulheres, óbvio, têm papel de destaque no romance. Sem falar da volúvel e pérfida mãe de Carlos Eduardo e de Maria Eduarda, que se tornaria a grande paixão de sua vida, se pode citar, por exemplo, Terezinha, “namoradinha” de infância do futuro médico, formado em Coimbra. Como Hermengarda, primeiro amor adúltero do jovem Maia. Como a ruiva Gouvarinho, que nutre por ele devastadora paixão e da qual ele se “enjoa”, após tumultuoso relacionamento proibido. Ou como Raquel Cohen, casada com um banqueiro, a grande paixão do amigo João da Ega. Todos esses personagens, e outros menos relevantes, é que dão vida ao enredo de “Os Maias” e lhe conferem verossimilhança, ou seja, tornam crível essa história incrível.

Coincidentemente, após a releitura do apaixonante romance de Eça de Queiroz, fiquei sabendo que o canal de TV a cabo Viva reprisaria a minissérie que a Rede Globo produziu e exibiu entre 9 de janeiro e 23 de março de 2001, baseada nessa magnífica obra do escritor português. Ela já está no ar desde 6 de março. Foi escrita por Maria Adelaide Amaral, João Emanuel Carneiro e Vincent Villan. Dirigida por Emílio di Biasi e Del Rangel, tem no elenco, nos principais papeis, Fábio Assunção, Ana Paula Arósio, Walmor Chagas, Leonardo Vieira, Simone Spoladore e Selton Melo, entre outros.

A minissérie tem uma diferença do livro: incorpora tramas e elementos de outro romance de Eça, “A relíquia”. Está aí, pois, uma excelente sugestão para quem não leu essa obra-prima, mas quer conhecê-la . Trata-se de produção literária entre as melhores da literatura de língua portuguesa e mundial (por que não?). Acompanhe essa reprise do Viva, que vai ao ar, de segunda a sexta-feira, no horário das 22 horas e conclua se exagerei em minha avaliação. Asseguro que não! Assista à minissérie, mas, de preferência, leiam, também, o livro de Eça de Queiroz. Vale a pena.

Boa leitura.

O Editor.



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Um comentário:

  1. Os Maias foi um livro difícil de ler, dada sua extensão, mas adorei fazê-lo. O avô não acreditava em Deus, e assim ensinou ao neto. Alegava aos amigos que o seu neto tinha bons princípios morais e que eram mais verdadeiros que os dos demais, pois não fazia o bem pensando em recompensa, e sim, pelo bem em si. Também vi a mini-série, bastante chocante, para a nossa visão de sociedade cristã ocidental. Demorei meses para terminar o livro, mas pretendo relê-lo.

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