quarta-feira, 28 de março de 2012







O choro de Indira

* Por Marco Albertim


O tapa que o marido lhe dera deixou-a mais apreensiva que dorida. Embriagado, ele enchera-se de autoridade sobre os direitos que tinha sobre a mulher. Apesar da dor, ela não gemera; cobrira a face com a mão direita. Ninguém na casa além dos dois, mas a mão servira para esconder a vergonha. Levantou-se com a mesma rapidez da queda, e só tirou a mão do rosto para segurar a filha no berço, sair apressada para a casa da mãe.
No caminho, deixou-se sorver pelo vestido que não mais compraria; e pela dúzia de fraldas, vista na prateleira da farmácia, ainda com o mesmo preço mas com a compra incerta. A filha teria que se contentar com a nudez demorada, enquanto as fraldas usadas fossem lavadas e secadas no varal do quintal.
- Ave! – disse a mãe.
A mãe assustou-se mais com a neta do que com a filha sentada no sofá, chorando a dor que escondera do marido.
- Por quê? – quis saber a mãe.
- Porque eu pedi o dinheiro para o vestido e para as fraldas.
- Só por isso!?
- Eu disse que ele dá mais valor à bebida do que às roupas da filha.
A casa, uma moradia de dois quartos pequenos, com espaço para a cama de casal sempre coberta com um lençol branco de bolinhas azuis; para entreter a curiosidade da pirralha. Na outra parede, um guarda-roupa de duas portas, da altura do casal; de um lado, as roupas dele; de outro, as dela; duas gavetas embaixo; numa, meinhas, camisinhas e fraldas do nenê; noutra, as calcinhas da mãe ao lado das cuecas do pai. Ficara para trás o culto ao canto estreito, nunca abençoado por rezas, inda que no molde exato de bolinagens incitando a exaustão.
Na pressa, sem zelos de simetria, pusera numa sacola de boutique suas roupas; bermudas, blusinhas e dois vestidos. A sacola, agora ela a espreita com curiosidade no passado, obtivera-a da última vez que fora ao shopping. O azul-escuro, em vez de embaciar os desígnios, reiterara a jura de se deixar empapar no sêmen denso de prenhez. Ficara para trás o visgo, a resina, a papa de proveito múltiplo.
Agora, ela chora, sente que a umidade no dorso da mão é tão cerrada quanto os dentes que se trincaram para enfrentar a agonia da rutura do cabaço. A boca se abrira para dar lugar ao gemido; agora, fecha-se para gemer por dentro.
Na sala, a televisão com prestações quitadas fulgurando a trama medíocre da novela; a televisão, paga, remoçara Tarcísio Meira e Glória Meneses; Faustão! Nem tão gordo quanto o abdome desbastado do marido.
Na cozinha, o aparador de louças; três pés de solas em curva, apontando para cima, interligados por hastes de um palmo medido na mão do marido. As panelas, inda que não à prova de ferrugem, com cheiro de nada posto que o nada tem o viço indistinto de tudo que se há de dispor.
O lume do fogão operando a alquimia do cheiro pastoso do feijão. Também já pago, o fogão; o enredo tivera começo numa incursão sem compromisso de compras, ali mesmo, na feira do populoso Rio Doce. De braços dados, como se namorados fizessem a festa de cobiça nos olhos do negociante da barraca.
Tão visgoso quanto o sêmen de que se provera, o choro de Indira deu conta do oitão coberto da casa, da lavanderia nua de cerâmica, grossa de cimento liso. As roupas dos três moradores se amontoando ao lado da torneira, espremidas por mãos no esforço de se distinguir do lodo tão comum à rua depois da chuva. Dois cordões atados na parede, numa ponta e noutra, cúmplices, sem queixas.
Decorridos mês e meio, ela soube que o marido, nos fins de semana, entretinha-se com outra. Não tão loura quanto os cabelos aveludados de Indira, nem de rosto com nariz aquilino e queixo miúdo; frutos, diga-se, de seus apurados vinte e cinco anos. O marido, emendaram-lhe, sequer dá tratos à vizinhança.
O tempo não curtiu sua pele no trânsito de lembranças. Entrou na Vara de Família, e já recebe pensão alimentícia. No bar onde é garçonete, corre para atender uma dezena de mesas; sua, talvez por isso tenha aprendido a não recusar um copo cheio. Indira hoje também fuma.


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. Pude sentir a dor da vergonha, essa que nos faz
    manter os olhos no chão.
    E quantas Indiras vagam por aí...
    Um texto que nos leva a pensar e solidária
    eu a levo em meus pensamentos.
    Abraços

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