quarta-feira, 14 de março de 2012



Olhos Azuis

* Por Alian Moroz

Para Albertino Meireles e Dona Poliana.

Os balões coloridos enfeitavam os céus da cidade. Alguns tinham formas mais complexas, contudo, os coloridos me chamavam mais a atenção. Apontei com a mão para um que acabara de sair do chão, com uma tripulação composta por três pessoas. Minha filha pequena sorriu. Os olhos dela brilharam. Olhos de criança sempre brilham ante ao espetáculo das cores e da vida. Iguais aos meus olhos, naquela tarde de setembro.

Levantei cedo. As nuvens de agosto cobriam grande parte da luz do sol. Achei bom. O sol me ardia a vista. Desde que descobri sobre a doença degenerativa das córneas, pareceu-me que a moléstia se intensificara por conta de uma sugestão psicológica.
O café era fraco, reclamei com Fernanda.
– Você está cada dia mais ranzinza, Lucas.
Não contestei as palavras dela. Sabia que Fernanda tinha razão. Andava mesmo tenso. Não conseguia mais discernir as cores e, certos rostos, confundiam-se com sombras, aquelas que aparecem em nossos pesadelos e que não sabemos ou não lembramos depois.

Como Matemático e Físico, sempre deixei claro o meu lado cético. Nunca usava a palavra “creio”, sempre a substituía por “penso”. Cônscio, sabia da inexistência das cores, que vivemos em um mundo cinza, nossos olhos, verdadeiros fanfarrões, sempre nos iludiram.

O mais incrível é que agimos conforme a maior ou menor sensibilidade à luz que nos chega à retina. Os céticos adoram ver o cinza. Sentem-se seguros num mundo verdadeiro, sem enfeites. Já os ignorantes, os inocentes, não se perguntam se o arco-íris é exato ou apenas uma ilusão de ótica. Divertem-se à sangra da noção.

Dirigi-me cambaleante à sala dos Professores, sem responder aos cumprimentos ou sorrisos das pessoas que vinham na minha direção. Não gostava da maioria. A minoria, eu simplesmente não via. Aula preparada com antecedência, aliás, já sabia, de forma robótica, como agir perante os alunos. Vinte anos no corpo docente nos transformam em autômatos, invariavelmente, sem exceções.

A dor, desta feita, foi mais aguda e forte. Levei as mãos aos olhos. Senti um líquido viscoso a escorrer pelo rosto. Com desespero compreendi, apesar de ver um cinza escuro, que o líquido era sangue. Notei os rostos, em meio à penumbra de minha visão, espantados a fitarem-me.
– Professor Lucas, o senhor está bem? – disse uma voz fina, vinda de um ponto cego.
Não sei se consegui responder. Perdi os sentidos e só fui acordar em um leito de hospital. Recobrei a consciência, mas não a visão.
– Fique calmo, Lucas. Está tudo bem agora – disse a voz de Fernanda entoada em comiseração.
– O que houve, querida? – perguntei.
– As suas córneas arrebentaram. Praticamente desmancharam-se devido à ação do vírus.
– Como pode ser isso? Disseram que ainda levaria tempo - respondi com firmeza. Fernanda pareceu confusa.
- Doutor Francisco me explicou assim: foi feito um transplante de emergência.
Ficamos calados por alguns minutos.
– Como conseguiram doador?
Ela não me respondeu. Decidi não perguntar mais nada.

O médico adentrou pouco tempo depois das nove horas da manhã. Já se passara um período de vinte e quatro horas pós-cirúgico. Senti um entusiasmo em sua voz.
– Muito bem, professor Lucas Mantinni. Vamos tirar essas bandagens e verificar esses novos olhos.
Assenti com um sorriso que considerei amarelo. Levantaram a cabeceira da cama até eu ficar quase na posição adequada. Senti os curativos serem tirados com delicadeza por mãos femininas. Somente mãos femininas possuem tal qualidade. Delicadeza.

O quarto estava escuro, mas vislumbrei Fernanda postada ao lado direito da porta, a enfermeira que retirara as bandagens e o Doutor Francisco, bem sorridente, na minha frente.
– Não estou vendo direito, Doutor.
– Isso é normal, Lucas. Em uma semana estará novo em folha.
Acalmei-me. Fernanda se aproximou, sorriu quando apertou minha mão.
– Vida nova, meu amor. Um outro homem.
– Espero que não – respondi com ironia. – São apenas olhos, Fernanda. Continuo o mesmo. Do jeito que fala até parece que sofri o batismo de alguma seita.

Nunca estive tão enganado. Uma semana depois comecei a perceber que enxergava a realidade de maneira díspar. Algo me afetara profundamente. Eu nunca havia percebido a cor azul. Comecei a olhar para o céu com maior frequência. Tudo que se relacionava a tal cor trazia-me uma curiosidade infantil. As pessoas e Fernanda começaram a notar a mudança, até que, em uma manhã ensolarada de domingo, ela olhou espantada para mim.
– Amor, seus olhos... o que houve com eles?
– Pare com isso, Fernanda. Pare de me olhar assim. Está me deixando nervoso.
– Vá até o espelho e veja você mesmo – disse ela.

Azuis. Meus olhos estavam azuis. Fiquei assustado. Como poderia tal fato ter ocorrido? As córneas não mudam a cor dos olhos, mesmo que o doador tivesse olhos claros. Na segunda-feira, estava no consultório do Doutor Francisco.
– Não sei lhe explicar o que houve. Isso não é normal. A mudança da cor dos olhos só ocorre através de produtos químicos injetados diretamente na corrente sangüínea. Isso em momento algum ocorreu com você, Lucas.
– Então, o que faço? Espero, quem sabe, meus cabelos ou o dedão do pé mudarem de cor agora?
Ele riu.
– É claro que não. Vamos esperar o prazo de seis meses, onde ocorre o maior perigo de rejeição. Enquanto isso farei alguns exames. Mas, acalme-se, garanto-lhe que não é nada grave.

Os três meses que se passaram, não sei como explicar racionalmente, foram os melhores da minha vida. O azul preencheu algo em minha mente de maneira tão retumbante, que estava praticamente irreconhecível perante Fernanda e a todos que me cercavam. Pedi para Fernanda engravidar, era o combinado antes do casamento, o contrário do não querer ter filhos.
Por pouco não fizera meses antes uma vasectomia, mas a doença impedira tal ato.

Comecei a ler romances, brincar com o pequeno cão vira-latas que adotamos junto a um canil. Os domingos, agora, eram alocados em corridas pelo parque, em cumprimentos educados e uma vontade incontrolável de sorrir.
Fernanda engravidou. Uma menina estava por vir. Os números, razão única para mim, passaram a ficar em segundo plano. Pedi demissão da Universidade onde lecionava e, junto com Fernanda, montamos uma loja de brinquedos didáticos. Eu próprio não conseguia me reconhecer mais.

A campainha tocou. Pedi para Fernanda atender. Eu estava no segundo andar da casa, entretido com uma nova ideia para um protótipo de balão. Meu sonho agora era poder voar em um balão mais leve que o ar.
– Lucas! – chamou Fernanda lá de baixo. –Tem alguém aqui que lhe deseja falar.
Com certa má vontade de parar o projeto do balão, desci a escada até me ver no hall de entrada. Avistei uma senhora de cabelos quase grisalhos e olhar triste.
– Querido, essa é Dona Poliana Meireles.
– Muito prazer. Em que posso ajudá-la?
Ela parou e fitou-me diretamente nos olhos.
– São azuis. Seus olhos são azuis, exatamente como os de Tino.
Fiquei sem jeito. Meneei a cabeça em direção a Fernanda.
– Por favor, entre. – disse ela, convidando a senhora até a sala de estar.
O café estava com um gosto bom. Dona Poliana agradeceu a recepção.
– Sei que não deveria ter feito isso. É contra as regras, mas não pude conter minha curiosidade.
– Do que se trata? – indaguei à senhora de olhar triste.
Ela virou-se em minha direção e segurou meu rosto com as duas mãos, suavemente, com delicadeza.
– Esses olhos já me olharam muitas vezes, senhor – disse ela.
– Não compreendo – respondi fingindo não saber a intenção daquele afago.
– Esses olhos eram de Tino. Albertino Meireles, meu filho.
– Seu filho foi o doador das córneas...
– Sim – disse ela entre soluços. – Meu pequeno Tino também possuía. olhos azuis como os seus. O mesmo olhar... o brilho.
Fernanda levou as mãos à boca, tentando impedir uma exclamação.
– Ele adorava balões, todos coloridos, mas, principalmente, os azuis... Minha pequena criança... Era um sonhador.
– Não sei o que dizer, Dona Poliana... – resmunguei.
O silêncio imperou por alguns minutos.
– O que aconteceu? – perguntou Fernanda.
– Um veículo... Não teve tempo de frear a tempo – respondeu Poliana.
– Pegaram o culpado? – indaguei sem pensar.
– O motorista não teve culpa. Tino estava olhando para o céu quando foi pego pelo automóvel. Largou minha mão. Ele sempre fazia isso. Apesar da idade, era uma criança.
– Não entendi, Dona Poliana. Tino não era uma criança?
Ela roçou os dedos sobre meus olhos.
A seu modo era sim. Ele tinha 34 anos de idade, mas era especial...
– Especial?
– Sim. Ele tinha Síndrome de Down.
Confesso que senti um frio no estômago com a revelação. Eu, um Professor Universitário, com Doutorado em Física, estava vendo o mundo pelos olhos de um idiota.

Meses mais tarde, Doutor Francisco me chamou em seu consultório. Explicou-me o que ocorrera com a cor dos meus olhos. Os remédios contra a rejeição, que teria de tomá-los, pelo resto da minha vida, reagiram com um vírus, causando uma liberação de antígenos azulados. Nada milagroso ocorrera. Não foram as córneas de Tino que deixaram meus olhos azuis. Existia, por fim, uma resposta racional.

Finalmente, terminei o protótipo do balão. Num domingo de sol, voei acompanhado de minha filha Jéssica achou engraçado as pessoas parecerem pequenas, como formigas, vistas de cima, no balão. Perguntou-me por que o céu era azul.
– Não são todos que enxergam o céu em azul, minha filha. Apenas aqueles que possuem os olhos de criança... para sempre...

• Escritor e professor de matemática aposentado

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