domingo, 28 de março de 2010




Pensar o ser humano depois de Auschwitz

* Por Leonardo Boff

Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto de judeus perpetrado pelo nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente, em Auschwitz na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas seja de Hans Jonas do lado judeu, seja de J.B.Metz e de J. Moltmann do lado cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: Com pensar o ser humano depois de Auschwitz?

É certo que o inumano pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro de 1943: "Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e que jamais se escreverá". O nacionalsocialismo de Hitler tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou para ele em virtude e glória. Aqui se revelam traços do Apocalipse e do Anti-Cristo.

O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss" (1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia entre 1946-1947 e finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema exatidão e detalhes como enviou cerca de dois milhões de judeus às câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da morte" de que falava Hannah Arendt.

Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, enfim, um pequenoburgues normal. No final, antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau". Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.

Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do "Fuhrer" de exterminar os judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.

Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua própria pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar suplicante da mãe, pedindo misericórdia para aqueles inocentes" – comenta Höss – nunca mais esquecerei". Fez um gesto brusco e os policiais os jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.

Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, seja políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.

Este risco nos cerca pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desequilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.

(Texto enviado pela escritora Urda Alice Klueger de Blumenau/SC)

* Leonardo Boff é teólogo e autor de Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, Vozes (2009), entre outros tantos.



Dignidade está na moda.

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Desce as escadas o executivo engravatado, que ao passar pela poça, escorrega no chão; quem lhe estende a mão é um neguinho que varre a calçada.

A moça, que acaba de pagar uma fábula por uma bolsa de griffe, espirra; quem lhe deseja saúde é um gordinho, que limpa as escadas.

A criança, dentro do carro importado, quer um picolé; a mãe grita, mas o vendedor não escuta; a moça que cuida dos jardins da pracinha grita por ela:
-Oh! Do pau gelado!

Aquele que estende a mão não mede por quem o faz. Não julga as aparências. A boa maquiagem se desfaz com a chuva. O belo terno se desgasta com o tempo e as traças o devoram. Dignidade é marca registrada de gente boa e honesta, como nós, e está sempre na moda.

* Poetisa e colaboradora do Literário

Dona Maria, uma brasileira

* Por Clóvis Campêlo

Descobri Dona Maria em Mirandiba, vendendo comida perto da feira. Era um dia de sexta-feira e nós estávamos na cidade movidos pela curiosidade e pelo inusitado.

Mirandiba fica no sertão de Pernambuco, a 423 quilômetros do Recife, na região do Rio Pajeú, desgarrada da rodovia BR-232. Com pouco mais de 13 mil habitantes, entrou para a história política do Estado por ter sido a primeira cidade pernambucana a eleger um prefeito do Partido dos Trabalhadores.

Na época, eu fazia parte da Secretaria de Imprensa do Sindicato dos Previdenciários de Pernambuco e acompanhado da jornalista Wedja Gouveia e de Manoel, motorista, fomos em busca da matéria para o nosso jornal, o SindPress.

Queríamos entender como "o modo petista de governar" havia sensibilizado o povo daquele grotão perdido nos confins do Estado, em 1994. O que haveria mudado para que isso acontecesse?

O prefeito eleito pelo PT, Nelson Pereira, hoje deputado estadual pelo Partido Comunista do Brasil, era oriundo do PMDB e chegara ao poder depois de uma briga regionalizada onde o que menos interessava era a sigla partidária. Ou seja, mudara tudo e não mudara nada. Continuava tudo na mesma.

Tentamos conversar com Dona Maria sobre isso, mas para ela a vida era ir à feira e vender os seus quitutes. Não tinha nem ilusões e nem desilusões. Já se acostumara com a alternância dos coronéis no poder e instintivamente sabia que nada disso modificaria a sua vida.

E na verdade, a passagem do Partido dos Trabalhadores pelo poder, naquela pequena cidade do sertão pernambucano, em nada transformou o seu perfil ou a qualidade de vida do seu povo. O modo petista de governar era muito mais um refrão do que uma nova perspectiva de realidade.

E Dona Maria, uma brasileira, continuaria a sua rotina de fazer e vender comida na feira esperando que um dia o futuro finalmente chegasse a Mirandiba.

* Poeta e jornalista do Recife/PE

sábado, 27 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Quatro anos!

Coluna Direto do Arquivo – Pablo Uchoa, crônica “Quinze linhas”.

Coluna Clássicos – Walt Whitman, trecho do poema “Folhas das folhas de relva”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica, “Você sabia?”

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “Sob um céu de domingo”..

Coluna Porta Aberta – José Calvino de Andrade Lima, poema “Na estação”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Quatro anos!

Caríssimos leitores, boa tarde.
Quanta coisa é possível de se fazer em quatro anos? Depende. Alguns fazem muito. Outros, fazem pouco. E outros, ainda, até não fazem absolutamente nada. Alguns constroem vidas, futuros, obras e até nações nesse período. Outros, limitam-se a tarefas rotineiras, mas ainda assim produzem algo que lhes traga satisfação. Outros, ainda, simplesmente vegetam e somente ficam quatro anos mais velhos.
O tempo é sumamente relativo. Quatro anos passam num piscar de olhos quando estamos felizes e realizados. Com certo exagero, parecem meros quatro segundos. Esse mesmo período, contudo, é uma eternidade para os que estão sofrendo, para os frustrados, os doentes, os encarcerados, os derrotados, os infelizes... E são tantos...
Quatro anos, por exemplo, é quanto duram os mandatos dos políticos, prefeitos, governadores de Estado, presidentes da República, vereadores e deputados estaduais e federais. Os senadores têm esse tempo dobrado. Alguns (raros), ao cabo desse período têm grandes realizações a ostentar. Ganham, pois, nas urnas, novos mandatos com a mesma duração. Outros...
Quatro anos é o tempo que separa uma Copa do Mundo (de futebol, vôlei ou basquete) de outra. O mesmo se pode dizer em relação a Jogos Olímpicos e Pan-Americanos. Para uns, parecem uma eternidade, à espera de poder brilhar nos estádios. Para outros... é um piscar de olhos e mal dá para se prepararem com alguma chance de sucesso.
Quatro anos, também, é o tempo que leva para estudantes de muitas faculdades se formarem. Para os que se aproveitam bem desse ínterim, ele parece curtíssimo. Para os relapsos, os medíocres e os irresponsáveis, ele se arrasta mais lento do que a tartaruga.
Pois é. Quatro anos é quanto o Literário completa hoje, 27 de março de 2010. E para nós, foi um tempo comprido, interminável ou uma fração que representa meros quatro segundos? Cada qual que participa desse nosso quixotesco projeto que diga como o encarou.
Para este Editor, parece que se tratou de um piscar de olhos. Não que não tenha enfrentado dificuldades e tido que transpor imensos obstáculos, com cara de intransponíveis, para assegurar nossa mera existência. Foi uma luta titânica contra o tempo, a incompreensão, as limitações técnicas (minhas, não do espaço) e outros tantos fantasmas que me assombraram.
Encaro, todavia, esta data como um marco, e de vitória. Muitos lamentaram nossa saída do Comunique-se, entendendo que com isso perdíamos uma estrutura imensa de divulgação, visibilidade e prestígio e que isso significou profundo retrocesso. Alguns, até, nos abandonaram por causa disso. Discordo dessa postura e de quem pensava (ou ainda pensa) assim.
Tenho números em mãos que comprovam que mais pessoas nos visitam e prestigiam, diariamente, aqui, no blogspot, do que no prestigioso portal de onde nos retiramos. Os acessos diários, ali, nunca chegaram a 50. Aqui, nos dias piores, atingiram a 300. Houve até edições que foram vistas por mais de mil pessoas num único dia.
No momento em que escrevo estas considerações, o contador de acessos registra que já tivemos 73.768 visitas. E isso em dez meses, que é o tempo em que este marcador está instalado. É pouco? Também acho!!! Mas é muito mais do que a visibilidade que tínhamos no Comunique-se. Afirmo, baseado em dados concretos, que é quase dez vezes mais. Convenhamos, é cifra muito considerável.
Outro aspecto a destacar é nossa periodicidade. Neste um ano que estamos na nova casa, não houve um único dia em que não tivéssemos edição. São 114 edições a mais do que teríamos no Comunique-se, já que ali não éramos publicados aos sábados, domingos e feriados.
E a quantidade de textos editados? O que dizer dela? Contamos com vinte fiéis, leais, dedicados e competentes colunistas fixos. Quanto a colaboradores eventuais, sabem a quantos ascendem? A mais de 400! Somos, certamente, o espaço mais plural da internet. Se duvidarem, apontem outro que nos supere. Publicamos mais de quatro mil textos, de todos os gêneros, assuntos e até tendências ideológicas, sem a mais remota restrição. O Literário é absoluta e rigorosamente democrático e aberto a quem se dispuser a aderir ao nosso projeto.
Outro aspecto a destacar é a nossa isenção. Explico. Quando alguém leva um fora da namorada, o que, via de regra, faz? Procura esquecê-la logo e não quer nem ouvir falar no seu nome dali por diante, isso quando não a hostiliza.
Quando algum amigo nos deixa na mão, o que, invariavelmente, fazemos? Rompemos todas as relações com ele, riscamo-lo do nosso círculo de amizades e não temos mais com ele sequer relacionamentos formais.
E nós, como agimos com os que nos deixaram na mão (e foram vários)? Reconhecemos a contribuição que deram enquanto eram colunistas e abrimos espaço, e em dois dias nobres da semana (sábado e domingo) para republicar seus textos.
Claro que minha valorização aos colunistas é absoluta. E não faço isso, sequer, subjetivamente, para agradar “x”, “y” ou “z”. Ajo assim porque, além de assíduos, abnegados e cumpridores do compromisso que assumiram comigo, são muito bons escritores e sabem o que querem. A prova disso é o teor das entrevistas com eles, que venho publicando periodicamente, com assiduidade.
Neste quarto aniversário, peço licença para fazer um registro especialíssimo. Sem citar nomes (para não correr o risco de omitir algum), agradeço, do fundo da alma, aos abnegados que, diariamente, sem atentar para custos e nem para o tempo que gastam, imprimem nossas edições e as distribuem gratuitamente aos colegas que não têm computador. E querem saber de uma coisa? Essas pessoas sequer me conhecem pessoalmente, nem mesmo são da minha cidade. Alguns moram em localidades que distam, no mínimo, a mil quilômetros ou mais daqui de Campinas. É por causa de gente assim que o Literário sobrevive, cresce, se desenvolve e se consolida.
Há uns seis meses, quando nosso número de seguidores não chegava a 40, fiz um desafio, ciente de que não seria aceito por ninguém: o de chegarmos a 100 seguidores quando do nosso aniversário. Não atingimos a centena, é verdade. Mas passamos raspando.
Hoje, neste 27 de março de 2010, eles são 95! Essa é uma aposta que eu perderia com muito gosto (pois apostei que não chegaríamos a cem). Não chegamos lá, é verdade. Mas... por aproximação, digamos que a cifra foi atingida e que perdi o desafio. E eu, que detesto perder no que quer que seja (tanto que nunca jogo nada), recebo essa “derrota” não só com satisfação, mas até mesmo com euforia. FELIZ ANIVERSÁRIO para nós!!!!

Boa leitura.

O Editor.



Quinze linhas

*Por Pablo Uchoa

Diante de uma boa estória, os olhos do meu camarada Lira Neto cintilam por detrás da tulipa de chope. E entre risadas ele se anima:

– Faça disto uma crônica de quinze linhas!

Ao computador, escrevo e conto: uma, duas, três, quatro linhas – e nem sequer introduzi o tema da crônica.

Estamos mal, eu e o leitor por certo. Este, tendo de desperdiçar seus olhos e neurônios com uma sopa insossa de idéias; eu, inoperante ao ver nestas linhas o reflexo da minha falta de concisão e, portanto, de talento.

“Em que momento me ferrei e deixei gorar aquele potencial que todos trazemos da infância?”, investigo. Meus olhos percorrem as prateleiras e se detêm num livro de Marina Colasanti, cujo estilo eu me desdobrava para imitar, aí pelos meus quinze anos. Contos de amor rasgados, não haveria melhor nome para sua obra-prima: tanta singeleza, todo um universo contido em uns microcontos curtíssimos, um par de parágrafos, ou nem isto. Uma frase ou duas e pronto, breves como bilhetes de amor lançados ao mar, como sugere o título, mas a esta altura o leitor já tinha em si um oceano.

Colasanti foi meu prelúdio para outros estilos ainda mais sóbrios, o de Moreira Campos, por exemplo. O velho mestre dispensava até os verbos, ficou marcado pelas frases substantivadas que valiam por um parágrafo. Deixava-me mudo com umas construções que faltavam explodir de tão condensadas, com palavras sufocantes, quase, mas por outro lado tão pictóricas. Palavras exatas.

Áridas? Limpas, prefiro. Neste quesito ninguém melhor do que Graciliano Ramos, para quem escrever era cumprir uma pena. Qual um condenado, o velho Graça passava horas escrevendo seus textos e dias cortando-os, a ponto de restarem apenas os trechos inalienáveis, a espinha dorsal.

Confesso, com meu olhar nebuloso e minha mania de digressões, sou um péssimo seguidor dos mestres. Vejo a imortalidade das 130 páginas de São Bernardo e das 80 d’A Metamorfose, de Kafka, e tenho pena por esta laia de prosadores que ocupamos o tempo e a paciência do leitor com livros de dois, três, quatro dedos de espessura.

Inútil. Porque, para o leitor, o que sobrevive ao tempo não passa de uma faísca da obra original. A impressão do olhar oblíquo e dissimulado de uma Capitu, a cena de uns cães latindo e vendo coisas à beira de uma piscina. E, das boas obras, a sensação de leveza.

Inexplicável leveza como a de banhar-se num rio de águas cristalinas, em cujo fundo se vejam as pedras que calcam o trajeto. Texto fluido como uma corrente de água mineral, que ao passear pelo corpo refresque a alma, e que depois resvale pelos dedos das mãos em minúsculas gotas.

*Jornalista, graduado pela USP em 2000. Trabalhou, por cinco anos, na TV Globo, como produtor e editor da Globonews e do núcleo de reportagens especiais do Jornal Nacional. Mora na Inglaterra, como pesquisador do Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres.



Folhas das folhas de relva

Por Walt Whitman


I

Com música forte eu venho,
com minhas cornetas e meus tambores:
não toco hinos
só para os vencedores consagrados,
toco hinos também
para as pessoas batidas e assassinadas.
Vocês já ouviram dizer
que ganhar o dia é bom?
Pois eu digo que é bom também perder:
batalhas são perdidas
com o mesmo espírito
com que são ganhas.
Eu rufo e bato o tambor pelos mortos
e sopro nas minhas embocaduras
o que de mais alto e mais jubiloso
posso por eles.
Vivas àqueles que levaram a pior!
E àqueles cujos navios de guerra
afundaram no mar!
E a todos os generais
das estratégias perdidas,
que foram todos heróis!
E ao sem número dos heróis maiores
que se conhecem!

II

Quem é que vai por aí
aflito, místico, nu?
Como é que eu tiro energia
da carne de boi que como?
O que é um homem, enfim?
O que é que eu sou?
O que é que vocês são?
Tudo o que eu digo que é meu,
vocês podem dizer que é de vocês:
de outro modo, escutar-me
seria perder tempo.
Não ando pelo mundo a lastimar
o que o mundo lastima em demasia:
que os meses sejam de vácuo
e o chão seja de lama
e podridão.
A gemer e acovardar-se,
cheio de pós para inválidos,
o conformismo pode ficar bem
para os de quarta categoria;
eu ponho o meu chapéu como bem quero,
dentro ou fora de portas.
Por que iria eu rezar?
Por que haveria eu de me curvar
e fazer rapapés?
Tendo até os estratos perquirido,
analisado até um fio de cabelo,
consultado doutores
e feito os cálculos apropriados,
eu não encontro gordura mais doce
do que a inserida em meus próprios ossos.
Em toda pessoa eu vejo a mim mesmo,
nem mais nem menos um grão de mostarda,
e o bem ou mal que falo de mim mesmo
falo dela também.
Sei que sou sólido e são,
para mim num permanente fluir
convergem os objetos do universo;
todos estão escritos para mim
e eu tenho de saber o que significa
o que está escrito.
Sei que sou imortal,
sei que esta minha órbita não pode
ser traçada
pelo compasso de um carpinteiro qualquer.
Sei que não passarei
assim que nem verruga de criança
que à noite se remove
com um alfinete flambado.
Eu sei que sou majestoso,
não vou tirar a paz do meu espírito
para mostrar quanto valho
ou para ser compreendido:
tenho visto que as leis elementares
jamais pedem desculpas.
(Eu reconheço que afinal de contas,
não levo meu orgulho
além do nível a que levo a minha casa.)
Existo como sou,
isso é o que basta:
se ninguém mais no mundo
toma conhecimento,
eu me sento contente;
e se cada um e todos
tomam conhecimento,
eu contente me sento.
Existe um mundo
que toma conhecimento,
e este é o maior para mim:
o mundo de mim mesmo.
Se a mim mesmo eu chegar hoje,
daqui a dez mil ou dez milhões de anos,
posso alcançá-lo agora bem-disposto
ou posso bem-disposto espetar mais.
O lugar de meus pés
está lavrado e ajustado em granito:
rio-me do que dizem ser dissolução
- conheço bem a amplitude do tempo.

III

Eu sou o poeta do Corpo
e sou o poeta da alma,
as delícias do céu
estão em mim
e os horrores do inferno
estão em mim
- o primeiro eu enxerto
e amplio ao meu redor,
o segundo eu traduzo
em nova língua.
Eu sou o poeta da mulher
tanto quanto o do homem
e digo que tanta grandeza existe
no ser mulher
quanta no ser homem,
e digo que não há nada maior
do que uma mãe de homens.
Canto o cântico da expansão e orgulho:
já temos tido o bastante
em esquivanças e súplicas,
eu mostro que tamanho
nada mais é do que desenvolvimento.
você já passou os outros,
já chegou a Presidente?
É pouco: até aí hão de chegar
e irão ainda mais longe.
Eu sou aquele que vai com a noite
tenra e crescente,
e invoco a terra e o mar
que a noite leva pela metade.
Aperte mais, noite de peito nu!
Aperte mais, noite nutriz magnética!
Noite dos ventos do sul,
noite das poucas estrelas grandes!
Noite silenciosa que me acena
- alucinada noite nua de verão!
Sorria, ó terra cheia de volúpia,
de hálito frio!
Terra das árvores líquidas e dormentes!
Terra em que o sol se põe longe,
terra dos montes cobertos de névoa!
Terra do vítreo gotejar da lua cheia
apenas tinta de azul!
Terra do brilho e sombrio encontro
nas enchentes do rio!
Terra do cinza límpido das nuvens,
por meu gosto mais claras e brilhantes!
Terra que faz a curva bem distante,
rica terra de macieiras em flor!
Sorria: o seu amante vem chegando!
Pródiga, amor você tem dado a mim:
o que eu dou a você, por tanto, é amor
- indizível e apaixonado amor!

- (Fragmentos) 1 - (1983, Brasiliense, trad. Geir Campos) canto a Mim mesmo).